Folha de S. Paulo


A vingança de Wall Street

Em Wall Street, 2010 foi o ano da "raiva de Obama", durante o qual os magnatas das finanças se enfureceram diante da sugestão presidencial de que alguns banqueiros haviam ajudado a causar a crise financeira. Eles também estavam furiosos, claro, com a Lei Dodd-Frank de reforma do setor financeiro, que impunha alguns limites às suas transações e negociatas.

Os Mestres do Universo não passam de um bando de chorões, como esse episódio provou. Mas eles são chorões com vastas reservas de dinheiro, e agora compraram um Congresso que servirá seus interesses.

Antes de eu tratar de detalhes, vamos falar sobre a mudança no panorama político das altas finanças.

A maioria dos grupos de interesses tem lealdades políticas. Por exemplo, a indústria do carvão sempre faz a vasta maioria de suas doações de campanha aos republicanos, enquanto os sindicatos de professores fazem o mesmo em favor dos democratas.

Seria de esperar que Wall Street favorecesse os republicanos, sempre ávidos por cortar os impostos dos ricos. Na verdade, porém, o setor de títulos e investimento –talvez por força do liberalismo social de Nova York, talvez em reconhecimento do fato de que as ações tendem a se sair muito melhor quando os democratas estão na Casa Branca –historicamente dividia seu apoio mais ou menos igualmente entre os partidos.

Mas tudo isso mudou quando nasceu a raiva de Obama. Wall Street apoiou Mitt Romney por maioria esmagadora em 2012, e este ano uma vez mais investiu pesadamente nos republicanos.

E o retorno inicial sobre esse investimento já está sendo concretizado. Na semana passada, o Congresso dos Estados Unidos aprovou um projeto de lei que manterá o governo funcionando no ano que vem, e incluiu no projeto a revogação de uma cláusula da lei de reforma financeira de 2010.

Esse recuo, isoladamente, é significativo mas não representa um golpe fatal para a reforma. No entanto, é completamente indefensável. A maioria republicana que assumirá controle completo do Congresso no começo do ano que vem revelou sua agenda - e ela envolve recompensar os maus agentes.

Falemos da cláusula em questão. Um dos objetivos da reforma financeira era impedir os bancos de assumir grandes riscos com o dinheiro dos depositantes. Por quê? Bem, depósitos bancários contam com proteção contra perdas, e isso cria um problema, já bem conhecido, de risco moral.

Se os bancos puderem apostar livremente o dinheiro dos depositantes, estarão envolvidos em um jogo de "cara eu ganho, coroa o contribuinte perde". Foi o que aconteceu quando o setor de poupança e empréstimos imobiliários foi desregulamentado, nos anos 80, e imediatamente escapou a todo controle.

A Lei Dodd-Frank tentava limitar essa forma de risco moral de diversas maneiras, entre as quais uma regra que proibia instituições protegidas pelo seguro federal a depósitos de operar com títulos exóticos, da espécie que desempenhou papel tão importante na crise financeira.

E foi essa a regra que acabou de ser revogada.

Bem, não estamos falando da morte da reforma financeira. Na verdade, eu argumentaria que regulamentar os bancos protegidos pelo seguro federal a depósitos não passa de uma questão colateral, já que a crise de 2008 foi causada em larga medida por instituições que não desfrutavam desse seguro, como o Lehman Brothers e a AIG.

As partes realmente importantes da reforma envolvem a proteção ao consumidor e a capacidade reforçada das autoridades regulatórias para policiar as ações de instituições financeiras "sistemicamente importantes" (que não precisam necessariamente ser bancos convencionais), e promover a liquidação dessas instituições em momentos de crise.

Mas o que o Congresso fez foi ultrajante –e os dois lados do debate político deveriam concordar quanto a isso. Afinal, mesmo que você acredite (contrariando as lições da História) que instituições financeiras são capazes de, e estão dispostas a, se policiar sem ajuda, mesmo que você acredite na narrativa grotescamente falsa de que foram os progressistas frouxos que causaram a crise ao pressionar os bancos a fazer mais empréstimos a mutuários pobres, você ainda assim deveria se opor a permitir que Wall Street use fundos garantidos pelo governo para seus joguinhos.

O que acaba de acontecer nada tem a ver com economia de mercado; foi um puro caso de capitalismo de compadres.

E a verdade é que foi o Citigroup, literalmente, que redigiu a porção do projeto de lei de orçamento que inclui a cláusula de desregulamentação.

Uma vez mais, o que aconteceu na semana passada não terá papel decisivo, em si. Mas representou claramente a primeira escaramuça em uma guerra para promover a derrubada de boa parte da, se não toda a, reforma financeira. E se você deseja saber quem defende o que, nessa nova guerra, basta seguir o dinheiro. Wall Street está doando dinheiro principalmente aos republicanos por um motivo.

É verdade que a maioria das manchetes políticas dos últimos dias gira em torno da divisão entre os democratas, com a senadora Elizabeth Warren instando pela rejeição de uma proposta orçamentária que a Casa Branca desejava aprovar. Mas a divisão envolve acima de tudo táticas, e poucos democratas acreditam que revogar a Lei Dodd-Frank seja uma boa ideia.

Enquanto isso, é difícil encontrar republicanos expressando forte reserva quanto à revogação da reforma. Às vezes surgem alegações de que o Tea Party se opõe tanto ao resgate aos banqueiros quanto à ajuda aos pobres, mas não existe sinal algum de que essa suposta hostilidade a Wall Street esteja influenciando minimamente as prioridades do Partido Republicano.

Assim, as pessoas que colocaram a economia de joelhos agora querem a oportunidade de voltar a fazê-lo. E contam com poderosos aliados, que estão fazendo tudo que podem para realizar o sonho de Wall Street.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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