Folha de S. Paulo


Quando o governo dá certo

O grande chilique norte-americano sobre o ebola, versão 2014, parece ter passado. A doença continua a devastar a África e, como no caso de qualquer epidemia, existe sempre um risco de surto renovado. Mas já há algum tempo não surgem casos novos nos Estados Unidos, e a ansiedade do público está rapidamente desaparecendo.

Antes que sigamos em frente, porém, vamos tentar aprender alguma coisa com esse pânico.

Quando o chilique coletivo estava em seu pico, o ebola não era só uma doença - era uma metáfora política. A direita norte-americana, especificamente, apontava para a situação como símbolo do fracasso do governo. Os suspeitos usuais alegavam que o governo Obama estava dormindo em serviço, mas, acima de tudo, eles insistiam em que uma política pública convencional seria incapaz de lidar com o problema. Importantes líderes republicanos sugeriram ignorar tudo que sabemos sobre controle de doenças e recorrer a medidas extremas tais como restrições de viagem, e eles zombavam das alegações de que as autoridades de saúde sabiam o que estavam fazendo.

Pois bem: as autoridades de fato sabiam o que estavam fazendo. A verdadeira lição que a história do ebola ensina é que às vezes a política pública está encontrando sucesso mesmo que inimigos do partido no poder não parem de gritar "fracasso". E o caso do ebola está longe de ser a única história que transcorreu dessa maneira.

Eis mais um exemplo: vocês se lembram da Solyndra? Tratava-se de uma empresa de energia renovável que tomou dinheiro emprestado usando garantias oferecidas pelo Departamento de Energia e terminou quebrando, o que custou US$ 528 milhões ao Tesouro norte-americano. E os conservadores criticam incessantemente esse prejuízo, fazendo dele um símbolo do que apontam como capitalismo de compadres descontrolado, e de imenso desperdício do dinheiro dos contribuintes.

Os defensores do programa de energia renovável tentaram em vão apontar para o fato de que qualquer um que realize muitos investimentos, seja o governo seja um executivo privado de capital para empreendimentos, corre o risco de ver maus resultados para esses investimentos. Por exemplo, Warren Buffett é uma lenda no mundo do investimento, e com bons motivos - mas mesmo ele tem sua cota de barcas furadas, como o prejuízo de US$ 873 milhões que ele anunciou este ano para seu investimento em uma companhia texana de energia. Sim, isso equivale a 50% mais que o prejuízo do governo federal com a Solyndra.

A questão não é se o Departamento de Energia concedeu alguns empréstimos imprudentes - se não o fizesse, não estaria correndo risco suficiente. O que importa é determinar se existe um padrão de maus empréstimos. E a resposta, na realidade, é que não. Na semana passada, o departamento revelou que o programa que incluía a Solyndra está a caminho de gerar lucro de US$ 5 bilhões ou mais.

Há também o caso da reforma da saúde. Como sempre, boa parte do diálogo nacional sobre a Lei de Acesso à Saúde vem sendo dominado por falsos escândalos alardeados pelos inimigos da reforma. Mas se você observar os resultados concretos até agora, eles vêm sendo notavelmente bons. O número de norte-americanos desprovidos de planos de saúde caiu acentuadamente, e mais de 10 milhões de pessoas anteriormente desprovidas de cobertura de saúde agora contam com isso; os custos do programa continuam abaixo das expectativas, e o aumento médio de mensalidades dos planos de saúde no ano que vem ficará bem abaixo do ritmo histórico de alta; uma nova pesquisa de opinião pública do instituto Gallup constata que as pessoas que acabam de adquirir planos de saúde estão muito satisfeitas com a cobertura obtida. Sob quaisquer padrões normais, esse é um exemplo dramático de sucesso de uma política pública, em escala próxima a um triunfo político.

Um último detalhe: vocês se lembram de toda a zombaria contra o governo Obama por afirmar que os deficit orçamentários, que dispararam durante a crise financeira, cairiam quando a economia se recuperasse? Os custos explosivos do Obamacare, somados ao programa de estímulo econômico, certamente se tornariam um fardo perpétuo, que geraria muito prejuízo para as contas públicas. Não? Bem, não - o deficit caiu rapidamente, e, como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), já está de volta ao nível anterior à crise.

A moral dessas histórias não é a de que o governo está sempre certo e sempre consegue sucesso. É claro que existem más decisões e maus programas. Mas o discurso político norte-americano moderno é dominado por cinismo barato sobre as políticas públicas, e por um desprezo generalizado por quaisquer esforços para melhorar nossas vidas. É fato que os políticos que odeiam o governo ocasionalmente conseguem forçar a concretização de suas profecias de fracasso, mas quando líderes desejam fazer com que o governo funcione, são capazes disso.

E sejamos claros: as políticas governamentais de que estamos falando aqui são imensamente importantes. Precisamos de uma política séria de saúde pública, e não de esforços para causar medo, a fim de conter doenças infecciosas. Precisamos de ação governamental para promover a energia renovável e combater a mudança do clima. Programas governamentais são a única resposta realista para as dezenas de milhões de norte-americanos que de outra forma ficariam desprovidos de serviços essenciais de saúde.

Os conservadores querem que você acredite que embora os objetivos dos programas públicos de saúde, energia e outros possam ser louváveis, a experiência demonstra que estão condenados ao fracasso. Não acredite nisso. Sim, às vezes as autoridades governamentais erram - afinal, estamos falando de seres humanos. Mas na verdade estamos cercados de exemplos de sucesso do governo, que os conservadores não desejam que você perceba.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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