Folha de S. Paulo


Fósforo e liberdade

A mais recente edição da "New York Times Magazine" publicou um perfil de jovens libertários –ou seja, pessoas que combinam o apego à economia do mercado a visões sociais permissivas– no qual Robert Draper pergunta, também, se estamos nos encaminhando a um "momento libertário".

Bem, provavelmente não. As pesquisas de opinião pública sugerem que os jovens dos Estados Unidos tendem, por margem superior à da geração de seus pais, a acatar os argumentos em favor de uma presença maior do governo. No entanto, a pergunta que eu gostaria de fazer é diferente: será que a economia libertária é realista?

A resposta é não. E a razão pode ser resumida em uma palavra: fósforo.

A cidade americana de Toledo recentemente alertou seus moradores para que não bebam água das torneiras. Por quê? Porque a água do lago Erie foi contaminada por algas tóxicas, causadas principalmente pela infiltração de fósforo usado na agricultura.

Quando li a respeito, lembrei de alguma coisa. Na semana passada, muitos dos pesos pesados republicanos discursaram em uma conferência patrocinada pelo blog Red State –e me veio à memória um ataque ao governo feito anos atrás por Erick Erickson, o criador do blog.

Erickson sugeriu que a opressiva regulamentação do governo havia chegado ao ponto de justificar que os cidadãos "marchassem até a casa de seu deputado estadual, o arrastassem para fora e o espancassem até sangrar".

E a fonte de sua ira? Uma proibição ao uso de fosfatos nos detergentes de lavagem de louça. Afinal, por que os funcionários do governo desejariam impor essa limitação?

Melhor ressaltar: os Estados que são banhados pelo lago Erie proibiram ou limitaram vigorosamente os fosfatos há muito tempo, o que colocou o lago sob controle por período considerável. Mas o uso agrícola de fosfatos até agora não foi restringido efetivamente, e será preciso que o governo intervenha ainda mais para salvar o lago.

O ponto é que, antes de lançar uma diatribe contra a intervenção governamental injustificada em nossa vida, seria bom perguntar por que o governo está interferindo. Muitas vezes –nem sempre, é claro, mas com muito mais frequência do que os fiéis do livre mercado gostariam de admitir–, há de fato bons motivos para que o governo se envolva.

Controles de poluição são o exemplo mais simples, mas não o único.

FALHAS DE MERCADO

Os libertários inteligentes sempre compreenderam que existem problemas que o livre mercado não é capaz de resolver sozinho. Por exemplo, Milton Friedman fez um famoso apelo pela abolição da Food and Drug Administration (FDA, a agência federal norte-americana que regulamenta e fiscaliza alimentos e remédios). Mas se isso acontecesse, como os consumidores saberiam que sua comida e remédios eram seguros?

A resposta dele era que as pessoas deviam confiar na Justiça. Ele alegou que as empresas teriam incentivo para não envenenar as pessoas por conta da ameaça de processos judiciais.

Você acredita que isso seria o bastante? Acredita mesmo? E, claro, as mesmas pessoas que atacam o governo grande tendem a apelar pela reforma das leis de processo e a atacar os advogados que conduzem processos de indenização contingente.

O mais comum é que as pessoas que se dizem libertárias lidem com o problema das falhas do mercado tanto fingindo que elas não existem quanto imaginando que o governo seja muito pior do que de fato é.

Estamos vivendo em um romance de Ayn Rand, eles insistem. (Não, não estamos.) Temos mais de cem diferentes programas de benefícios sociais, elas nos dizem, e esses programas desperdiçam vastas quantias com burocracia, em lugar de ajudarem os pobres. (Não, não temos, e não, o desperdício não existe.)

Eu muitas vezes me espanto, aliás, com a maneira pela qual os clichês antigoverno contrariam a experiência cotidiana. Se você fala sobre o papel do governo, invariavelmente encontrará pessoas dizendo coisas do tipo "você quer que tudo funcione como o Detran?"

As experiências variam, mas meus contatos com a Comissão de Veículos Motorizados de Nova Jersey tenderam a ser razoavelmente positivos (melhores do que meus contatos com seguradoras ou operadoras de TV a cabo), e tenho certeza de que muitos libertários, se fossem sinceros, admitiriam que suas experiências no Detran não foram assim tão ruins. Mas eles optam pela lenda de preferência ao fato.

PROJEÇÕES

Os libertários também tendem a se envolver em projeções. Não querem acreditar que existem problemas cuja solução requeira ação do governo, e por isso tendem a assumir que outras pessoas recorram, como eles, a raciocínios de base política para servir a uma agenda ideológica –presumem, por exemplo, que qualquer pessoa que se preocupe com, digamos, questões ambientais na verdade esteja tentando usar o medo para promover um crescimento na máquina do governo.

O deputado Paul Ryan, presidente do Comitê de Orçamento da Câmara, não só pensa que estamos vivendo a trama de "A Revolta de Atlas": ele afirma que todo o barulho quanto à mudança do clima não passa de "uma desculpa para aumentar o governo".

Como eu declarei no começo, você não deve acreditar no papo sobre uma ascensão do libertarismo. A despeito do liberalismo social que cresce cada vez mais nos Estados Unidos, o verdadeiro poder da direita ainda depende da tradicional aliança entre plutocratas e pastores evangélicos.

Mas as visões libertárias de uma economia desregulamentada também desempenham papel significativo no debate político, e por isso é importante compreender que essas visões são miragens.

É claro que algumas intervenções do governo são desnecessárias e insensatas. Mas a ideia de que temos um governo muito maior e mais intrusivo do que precisamos é uma fantasia tola.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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