Folha de S. Paulo


Os matreiros sonegadores corporativos

Em decisões recentes, a maioria conservadora na Suprema Corte dos Estados Unidos deixou clara sua posição de que empresas são pessoas, e que desfrutam de todos os direitos de que uma pessoa desfruta.

Elas têm direito à liberdade de expressão, o que significa que podem gastar montanhas de dinheiro para distorcer o processo político em seu benefício. Têm direito a crenças religiosas, o que inclui aquelas que podem significar uma negação de benefícios a seus funcionários.

O que virá a seguir, o direito a portar armas?

No entanto, existe uma grande diferença entre as pessoas jurídicas e as pessoas como você e eu. Se as tendências atuais persistirem, estamos a caminho de um mundo no qual apenas as pessoas físicas pagarão impostos.

Ainda não chegamos a esse ponto.

O governo federal ainda obtém um décimo de sua arrecadação de impostos sobre os lucros de empresas. Mas essa proporção costumava ser muito mais alta - um terço da arrecadação provinha de impostos sobre os lucros no começo dos anos 50, e mais de 25% até quase o final dos anos 60.

Parte do declínio registrado desde então reflete uma queda nas alíquotas de impostos, mas no geral a situação é reflexo de táticas cada vez mais agressivas da parte das companhias para evitar impostos - algo que os políticos pouco fizeram por impedir.

O que nos conduz à mais recente dessas táticas para evitar impostos: a "inversão".

Isso se refere a uma manobra legal sob a qual uma empresa norte-americana declara que suas operações nos Estados Unidos são propriedade de uma subsidiária sediada no exterior, e não o contrário, e usa essa inversão de papéis para retirar os lucros declarados da jurisdição dos Estados Unidos e transferi-los a uma jurisdição de impostos mais amenos.

A coisa mais importante a compreender sobre a inversão é que ela não envolve, de nenhuma maneira significativa, a transferência para o exterior de negócios norte-americanos. Considere o exemplo da Wahlgreen, a gigantesca rede norte-americana de drogarias que, de acordo com múltiplas reportagens está a ponto de se tornar uma companhia suíça, do ponto de vista jurídico.

Se o plano for executado, nada mudará nos negócios da empresa. A farmácia de seu bairro não será transferida para Zurique. A transação será apenas uma formalidade - mas privará o governo dos Estados Unidos de alguns bilhões de dólares em receitas que os contribuintes, ou seja, nós, terão de repor de alguma maneira.

Isso significa que o presidente Barack Obama está errado ao descrever as empresas que estão optando pela inversão como "desertores corporativos?"

Na verdade não - elas estão fugindo aos seus deveres cívicos, e pouco importa que se transfiram ao exterior de forma concreta ou não. Mas os apologistas da inversão, que tendem a alegar que os altos impostos estão expulsando empresas dos Estados Unidos, na verdade estão dizendo uma grande bobagem.

Essas empresas não estão transferindo produção ou empregos ao exterior - e continuam a obter seus lucros aqui nos Estados Unidos. Tudo o que estão fazendo é evitar impostos sobre esses lucros.

E o Congresso poderia reprimir essas artimanhas tributárias - já é ilegal que uma companhia alegue como domicílio legal um país no qual tenha poucas operações, e adotar critérios mais severos para que uma companhia norte-americana possa se declarar estrangeira bastaria para bloquear muitas das inversões em curso. Assim, existe algum motivo para não deter essa perda gratuita de receita? Não.

Os oponentes das medidas de repressão à inversão argumentam que em lugar de eliminar essas lacunas, deveríamos reformar todo o sistema de tributação de lucros, e talvez deixar de tributar lucros, completamente. Também tendem a argumentar que tributar os lucros empresariais prejudica o investimento e a criação de empregos. Mas esses são argumentos muito ruins para justificar a inação contra a inversão.

Para começar, existem bons motivos para tributar os lucros das empresas.

No geral, os impostos dos Estados Unidos favorecem os ganhos do capital ante os ganhos do trabalho; o imposto sobre os lucros empresariais ajuda a corrigir esse desequilíbrio.

Poderíamos, em princípio, manter a arrecadação tributária sobre a renda auferida pelo investimento de capital se compensarmos os cortes nos impostos empresariais com alíquotas substancialmente mais altas para os impostos sobre dividendos e ganhos de capital - mas seria uma solução imperfeita e, dado o estado de nossa política, é improvável que ela aconteça.

Além disso, eliminar os impostos sobre os lucros aumentaria muito o poder dos executivos das grandes empresas. Isso é algo que realmente desejamos fazer?

Quanto a reformar o sistema tributário: sim, isso seria uma boa ideia.

Mas os argumentos em favor de uma futura reforma nada têm em comum com os argumentos em favor de eliminar já as lacunas que permitem a prática da inversão. Afinal, existem grandes debates sobre o modelo da reforma, e eles demorariam anos a ser decididos mesmo que não tivéssemos um Partido Republicano que se opõe intransigentemente a qualquer coisa que o presidente proponha - ainda que a proposta seja algo que os republicanos mesmos defendiam anos atrás.

Por que permitir que as grandes empresas escapem a pagar sua proporção justa dos impostos enquanto esperamos que o impasse se resolva?

Por fim, nada disso tem coisa alguma a ver com investimento e criação de empregos. Se e quando a Wahlgreen mudar de "cidadania", ela manterá parte maior de seus lucros, mas não terá qualquer incentivo a investir esse dinheiro em suas operações nos Estados Unidos.

Assim, a questão deveria ser fácil. Acho muito justo que debatamos sobre como e quanto tributar os lucros empresariais. Enquanto isso, porém, que eliminemos as lacunas.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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