Folha de S. Paulo


Crenças, fatos e dinheiro

O "New York Times" publicou um artigo do cientista político Brendan Nyhan sobre um aspecto perturbador do atual cenário norte-americano –a severa divisão partidária quanto a questões que deveriam ser simplesmente factuais, por exemplo determinar se o planeta está esquentando ou se a teoria da evolução se aplica na prática.

É comum atribuir essas divisões à ignorância, mas, como aponta Nyhan, a divisão na realidade parece mais séria entre as pessoas aparentemente mais informadas sobre as questões.

O problema, em outras palavras, não está na ignorância, mas sim na contradição deliberada. Ao enfrentar um conflito entre as provas e aquilo em que desejam acreditar por motivos políticos e/ou religiosos, muitas pessoas optam por rejeitar as provas.

E saber mais sobre as questões agrava a divisão, porque os bem informados têm uma visão mais clara sobre que provas precisam rejeitar a fim de sustentar seu sistema de crenças.

Como você poderia imaginar, depois de ler Nyhan me apanhei pensando sobre o estado de coisas semelhante que existe quanto à economia, especialmente a economia monetária.

Alguns antecedentes. Antes que começasse a Grande Recessão, muitos sabichões e comentaristas conservadores - e não poucos economistas - tinham uma visão de mundo que combinava fé no mercado livre e desdém pelo governo. Essas pessoas sofreram um breve abalo com a revelação de que os "bestalhões" que haviam alertado sobre a habitação estavam certos, e de novas indicações de que mercados financeiros desregulamentados são perigosamente instáveis.

Mas eles se recuperaram rapidamente, declarando que, de alguma maneira, a crise financeira era culpa dos progressistas - e que o grande perigo que a economia precisava enfrentar agora vinha não da crise, mas dos esforços das autoridades para limitar os danos.

Acima de tudo, surgiram muitos alertas severos sobre os males de "imprimir dinheiro". Por exemplo, em maio de 2009, um editorial do "Wall Street Journal" advertia que tanto as taxas de juros quanto a inflação estavam destinadas a disparar "agora que o Congresso e o Federal Reserve inundaram o mundo de dólares".

Em 2010, um verdadeiro quem é quem de economistas e sabichões conservadores enviou uma carta aberta Ben Bernanke, então presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), advertindo que suas políticas acarretavam o risco de "deterioração da moeda e inflação".

Políticos importantes como o deputado Paul Ryan aderiram ao coral.

No entanto, a realidade se recusou a cooperar. Ainda que o Fed tivesse mantido seu curso de expansão monetária - o balanço da instituição cresceu para mais de US$ 4 trilhões, o que representa alta de mais de 500% desde que surgiu a crise - a inflação se manteve baixa.

DEPÓSITOS

Em geral, os recursos injetados pelo Fed na economia terminaram guardados pelos bancos como reserva ou guardados por indivíduos como depósitos em dinheiro - exatamente aquilo que os economistas do outro lado da divisão política alertaram aconteceria.

Seria desnecessário dizer que essa não é a primeira vez que uma doutrina econômica politicamente atraente se viu negada pelos fatos. Ou seja, aqueles que entenderam tudo errado devem ter voltado à velha prancheta de desenho, não? Hahahahaha.

Na realidade, quase nenhuma das pessoas que previram inflação descontrolada reconheceu que estava errada, e que o erro sugeria algo de errado em sua abordagem. Alguns ofereceram desculpas esfarrapadas; outros, seguindo o caminho daqueles que negam a mudança no clima, apelaram para teorias da conspiração, alegando que na realidade estamos vivendo uma imensa disparada da inflação mas que o governo está mentindo sobre os números (e, aliás, não estamos falando de simples blogueiros, mas de famosos professores da Universidade Harvard).

No geral, porém, o pessoal que acreditava na deterioração na moeda continua a repetir os mesmos argumentos, ignorando o completo fracasso de seus prognósticos.

CLIMA

Você pode estar imaginando por que a teoria monetária está sendo tratada como a evolução ou a mudança do clima. A questão de como administrar a base monetária não deveria ser técnica, e não uma questão de doutrina teológica?

Bem, ao que parece o dinheiro é de fato uma espécie de questão teológica. Muita gente na direita é hostil a qualquer forma de ativismo da parte do governo, considerando que isso seria apenas uma porta de entrada - caso você reconheça que o Fed pode ocasionalmente ajudar a economia ao criar "dinheiro do nada", o próximo passo é que os progressistas confisquem toda sua riqueza para dá-la aos 47%.

E não vamos esquecer que muitos conservadores influentes, entre os quais Ryan, extraem sua inspiração dos romances de Ayn Rand, nos quais o padrão ouro assume um status essencialmente sagrado.

E se você estudar a dinâmica interna do Partido Republicano, fica evidente que a facção que acredita em moeda deteriorada e no retorno ao padrão ouro vem ganhando força apesar do fracasso de suas previsões.

Será que há algo que possa reverter essa queda ao dogma? Alguns intelectuais conservadores vêm tentando persuadir seu movimento a acatar o ativismo monetário, mas vêm sendo cada vez mais marginalizados.

E é exatamente isso que o artigo de Nyhan nos leva a esperar. Quando a fé - o que inclui posturas econômicas baseadas em fé - encara as provas, as provas não têm chance.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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