Folha de S. Paulo


Charlatães, farsantes e o Kansas

Dois anos atrás, o Estado norte-americano do Kansas iniciou uma experiência tributária notável. Reduziu acentuadamente o imposto de renda estadual sem nenhuma ideia de clara de como reporia a arrecadação perdida.

O governador Sam Brownback apresentou o projeto de lei para a reforma - o maior corte percentual que qualquer Estado já adotou em prazo de apenas um ano - com assessoria estreita do economista Arthur Laffer. Brownback previu que o corte deflagraria um boom de crescimento econômico - "cuidado, Texas", ele proclamou.

Mas o Kansas não está passando por um boom - na verdade, a economia estadual está se saindo pior que a de Estados vizinhos, e também apresenta desempenho inferior ao do país como um todo. Enquanto isso, o orçamento estadual foi arremessado a um profundo deficit, o que levou a agência de classificação de crédito Moody's a rebaixar a classificação de seus títulos.

Há uma lição importante nisso - mas não é aquela que você está imaginando. Sim, o fiasco do Kansas mostra que cortes de impostos não têm poderes mágicos, mas já sabíamos disso. A verdadeira lição do ocorrido no Kansas é o poder duradouro das más ideias, desde que essas ideias sirvam aos interesses das pessoas certas.

Por que, afinal, alguém ainda acreditaria, a esta altura, nas teorias econômicas do supply-side, segundo as quais cortes de impostos incentivam tanto a economia que eles praticamente têm custo zero?

A doutrina foi demolida conclusivamente duas décadas atrás, quando mais ou menos todo mundo na direita - depois de alegar especiosamente que o desempenho da economia no governo de Ronald Reagan validava a doutrina - passou a prever que o aumento de impostos que Bill Clinton decretou para os ricos causaria uma recessão, ou até uma depressão escancarada.

O que aconteceu na realidade foi uma espetacular expansão econômica.

Não são apenas os progressistas que consideram que a teoria do supply-side e as pessoas que a promovem estão desacreditadas há muito.

Em 1998, na primeira edição de seu livro didático sobre Economia, que se tornou best seller, N. Gregory Mankiw, da Universidade Harvard - republicano histórico, e posteriormente presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca no governo Bush -, se pronunciou claramente sobre os danos causados por "charlatães e farsantes".

Ele destacou, especialmente, o papel de "um pequeno grupo de economistas" que, "quando Ronald Reagan era candidato à presidência, o aconselhou que um corte geral de impostos resultaria em aumento na arrecadação tributária".E um dos principais integrantes desse "pequeno grupo" era nada mais, nada menos que Art Laffer.

E não é como se os supply-siders tivessem se redimido posteriormente. Pelo contrário: estiveram tão ridiculamente errados nos últimos anos quanto estavam nos anos 90. Por exemplo, cinco anos se passaram desde que Laffer alertou os norte-americanos de que "devemos esperar uma alta rápida de preços e inflação muito, muito mais alta nos próximos cinco anos". Quase todo mundo em sua turma concordou. Mas o que vimos na realidade foram inflação baixa e taxas de juros que registraram baixa recorde.

Assim, como é que os charlatães e farsantes terminaram por ditar políticas no Kansas e, em menor medida, também em outros Estados? Basta seguir a trilha do dinheiro.

Pois os cortes de impostos de Brownback não surgiram do nada. Eles seguem de perto um plano proposto pelo Conselho Americano de Intercâmbio Legislativo, ou ALEC, organização que também bancou uma série de estudos segundo os quais cortes nos impostos das grandes empresas e dos ricos supostamente promovem crescimento econômico rápido.

Os estudos são todos embaraçosamente ruins, e a composição do conselho acadêmico do ALEC - que inclui tanto Laffer quanto Stephen Moore, da Heritage Foundation - não é exatamente um selo de credibilidade. Mas é o bastante para trabalhar contra o governo.

E o que é o ALEC, afinal? É uma organização sigilosa, bancada por grandes empresas, que cria anteprojetos de legislação para políticos conservadores em nível estadual. Ed Pilkington, do jornal "Guardian", que teve acesso a alguns documentos do ALEC, descreve a organização como "praticamente um serviço de paquera entre políticos em nível estadual, ocupantes de cargos eletivos em nível municipal e muitas das maiores empresas dos Estados Unidos".

E a maior parte dos esforços do ALEC são dirigidos, sem surpresa nenhuma, à desregulamentação, privatização e cortes de impostos para grandes empresas e os ricos.

E estou falando dos verdadeiramente ricos. Embora o ALEC defenda cortes pesados no imposto de renda, defende aumentos no imposto sobre as vendas - que incide mais pesadamente sobre os domicílios de renda mais baixa - e reduções na assistência bancada por impostos às famílias da classe trabalhadora.

Assim, a agenda da organização envolve tanto cortar impostos no topo e aumentar impostos na base, e ao mesmo tempo reduzir os serviços sociais.

Mas como se pode justificar um enriquecimento ainda maior daqueles que já são ricos e dificultar ainda mais a vida das pessoas que têm de lutar para sobreviver? A resposta é que para isso é necessária uma teoria econômica que alegue que uma política como essa é a chave para a prosperidade geral.

Ou seja, a teoria do supply-side atende a uma necessidade que conta com muito dinheiro a seu favor, e o fato de que ela fracasse continuamente não importa.

E o fiasco no Kansas tampouco importará. Fará com que alguns dos Estados que estavam considerando medidas semelhantes parem para pensar, por algum tempo. Mas esse efeito não durará muito, porque a fé na magia dos cortes de impostos não se relaciona a provas concretas; em lugar disso, envolve encontrar motivos para dar aos interesses mais poderosos exatamente aquilo que eles querem.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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