Folha de S. Paulo


A crise dos eurocratas

Um século atrás, a Europa se dilacerou naquilo que, por algum tempo, ficou conhecido como a Grande Guerra - quatro anos de morte e destruição em escala sem precedentes. Mais tarde, é claro, o conflito mudou de nome e se tornou conhecido como Primeira Guerra Mundial - porque um quarto de século mais tarde a Europa repetiu a história.

Mas isso aconteceu muito tempo atrás. É difícil imaginar uma guerra na Europa atual, que se uniu em torno dos valores democráticos e deu até os primeiros passos rumo a uma união política. De fato, no momento em que escrevo estão acontecendo eleições em toda a Europa não para selecionar governar nacionais, e sim os integrantes do Parlamento Europeu. É certo que o Parlamento tem poderes mito limitados, mas sua existência é um triunfo do ideal europeu.

Mas aí é que está: proporção alarmantemente elevada dos votos deve ser conferida a extremistas de direita hostis aos valores que tornaram possível essa eleição. Uma boa maneira de definir é a seguinte: alguns dos maiores beneficiários da eleição europeia provavelmente serão pessoas que estão do lado de Vladimir Putin na crise da Crimeia.

A verdade é que o projeto europeu - paz garantida pela democracia e prosperidade - está enfrentando sérios problemas; o continente continua a ter paz, mas está deixando a desejar em prosperidade e, de maneira mais sutil, em democracia. E, se a Europa tropeçar, será ruim não só para a região como para o mundo em geral.

Por que a Europa enfrenta problemas?

O problema imediato é o desempenho econômico medíocre. O euro, a moeda comum europeia, deveria ser o passo culminante na integração econômica do continente. Mas em lugar disso se transformou em uma armadilha. Primeiro, criou uma perigosa complacência, com investidores canalizando imensas quantias para o sul da Europa apesar do risco. Depois, quando a expansão se tornou contração, os países devedores se viram algemados, incapazes de reconquistar a competitividade perdida sem anos de desemprego em escala comparável ao da Grande Depressão.

Os problemas inerentes do euro foram agravados por más políticas. Os líderes europeus insistiam e continuam a insistir, apesar de todas as provas em contrário, na alegação de que a crise foi causada por irresponsabilidade fiscal, e impuseram medidas selvagens de austeridade que só servem para agravar uma situação já ruim.

A boa notícia, ou pelo menos uma notícia nem tão ruim, é que apesar de todos os equívocos o euro continua a resistir, surpreendendo os muitos analistas - entre os quais me incluo - que acreditavam que ele poderia ser destruído. O que explica essa resistência? Parte da resposta é que o BCE (Banco Central Europeu) acalmou os mercados ao prometer que faria "o que quer que fosse necessário" para salvar o euro, incluindo a compra de títulos públicos para impedir que os juros subissem demais. Além disso, a elite europeia continua a ter um firme compromisso para com o projeto, e nenhum governo se mostrou disposto a abandoná-lo - até agora.

Mas o custo dessa coesão da elite é uma distância crescente entre os governantes e os governados. Ao cerrar fileiras, a elite para todos os efeitos práticos garantiu que não haja vozes moderadas dissentindo da ortodoxia política. E essa falta de dissensão moderada confere poder a grupos como a Frente Nacional, na França, cuja principal candidata ao Parlamento Europeu denuncia "uma elite tecnocrática que serve à oligarquia financeira norte-americana e europeia".

A amarga ironia aqui é que a elite da Europa não é de fato tecnocrática. A criação do euro aconteceu por motivos políticos e ideológicos, e não em resposta a uma análise econômica cuidadosa (que sugeria desde o começo que a Europa não estava pronta para uma moeda unificada). O mesmo pode ser dito sobre a virada em direção à austeridade. Todas as pesquisas econômicas que supostamente a justificavam foram desacreditadas, mas as políticas não mudaram.

E o hábito da elite europeia de disfarçar a ideologia como conhecimento especializado, de fingir que aquilo que ela deseja fazer é aquilo que precisa ser feito, criou um deficit de legitimidade. A influência da elite repousa em uma presunção de conhecimento superior; quando surge prova de que essas alegações de superioridade são falsas, ela não tem onde se apoiar.

Até agora, como eu disse, a elite conseguiu manter as coisas em funcionamento. Mas não sabemos por quanto mais isso pode durar, e há gente muito assustadora esperando nos bastidores.

Se tivermos sorte - e se os dirigentes do BCE, que estão mais perto de ser tecnocratas genuínos do que o restante da elite, agirem com ousadia suficiente contra a crescente ameaça de deflação - poderemos ver alguma recuperação econômica real nos próximos anos. Isso criaria uma pausa para respirar, uma chance de recolocar nos trilhos o projeto europeu como um todo.

Mas a recuperação econômica não bastará, isoladamente; a elite europeia precisa lembrar do que o projeto realmente trata. É aterrorizante ver tantos europeus rejeitando os valores democráticos, mas ao menos parte da culpa cabe às autoridades, que parecem mais interessadas em estabilidade de preços e probidade fiscal do que na democracia. A Europa moderna foi construída sobre um nobre ideal, mas esse ideal precisa de mais defensores.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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