Folha de S. Paulo


A falácia da preguiça

A hipocrisia é o tributo que o vício presta à virtude. Por isso, quando se vê alguma coisa como a recente corrida dos republicanos para declarar profunda preocupação quanto aos pobres dos Estados Unidos, temos um bom sinal, uma indicação de mudança positiva nas normas sociais.

É o adeus ao desdém pelos 47%; e o alô da falsa compaixão.

E o novo relatório sobre a pobreza produzido pelo Comitê Orçamentário da Câmara dos Deputados, presidido pelo deputado republicano Paul Ryan, oferece motivos adicionais para otimismo. Ryan costumava depender de dados "acadêmicos", de coisas como a Heritage Foundation.

Você se lembra de quando a Heritage declarou que a proposta orçamentária de Ryan reduziria o desemprego a absurdos 2,8%, e depois recuou e tentou se desdizer?

Desta vez, no entanto, Ryan está citando diversas pesquisas sérias da área de ciências sociais.

Infelizmente, as pesquisas que ele cita na verdade não sustentam suas asserções. E, ainda mais importante, toda a sua premissa sobre os motivos para a persistência da pobreza é falsa.

Para compreender a origem desse novo relatório, é útil recordar algo que Ryan declarou dois anos atrás:

"Não queremos transformar a rede de seguridade social em uma rede de varanda, que atraia pessoas capazes de trabalhar a uma vida de dependência e complacência, privando-as da vontade e do incentivo a fazer o máximo de suas vidas".

Há na realidade duas asserções nessa declaração. A primeira é a de que programas de combate à pobreza geram complacência - ou seja, desencorajam o trabalho.

A segunda é a de que a complacência - o fato de que os pobres não trabalhem tanto quanto deveriam - é o que perpetua a pobreza.

O relatório do comitê orçamentário se ocupa quase inteiramente da primeira asserção. Aponta que houve um grande declínio na participação dos norte-americanos na força de trabalho, e alega que os programas de combate à pobreza, por reduzirem o incentivo a trabalhar, são um motivo importante desse declínio.

A isso se seguem 200 páginas de texto e 683 notas de pé de página, concebidas para criar a impressão de que trabalhos acadêmicos de pesquisa sustentam as alegações do relatório.

Mas não o fazem. Em alguns casos, Ryan e seus colegas falseiam o que as pesquisas afirmam, o que atraiu protestos indignados de diversos acadêmicos importantes que tiveram suas conclusões distorcidas.

O mais frequente, porém, é que o relatório exponha sua argumentação em forma de insinuações.

O texto faz uma asserção sobre os maus efeitos de um programa, e em seguida menciona diversos estudos sobre o programa em questão, causando com isso a impressão de que os estudos citados sustentam a asserção, ainda que não o façam.

O que as pesquisas acadêmicas sobre programas de combate à pobreza de fato dizem? Temos boas provas sobre os efeitos do programa de assistência alimentar e sobre o programa federal de saúde Medicaid - dois dos principais alvos da ira de Ryan, e que suas propostas de orçamento pretendem reduzir drasticamente.

A assistência alimentar aparentemente resulta em uma redução no trabalho e nas horas trabalhadas, mas o efeito é modesto. O Medicaid tem pouco, se algum, efeito sobre o esforço dos trabalhadores.

Em termos gerais, eis o veredicto de uma pesquisa abrangente:

"Embora muitos programas tenham efeitos colaterais significativos sobre o comportamento, seu impacto agregado é muito pequeno".

Em resumo, o relatório de Ryan sobre a pobreza, como suas propostas orçamentárias, é uma trapaça.

É possível, claro, argumentar que adotar programas mais generosos de combate à pobreza reduzirá o incentivo a trabalhar.

COMPARAÇÃO MUNDIAL

Se você considerar comparações entre países, descobrirá que os domicílios de baixa renda nos Estados Unidos, um país que faz muito menos para ajudar os pobres do qualquer das demais grandes nações avançadas, trabalham muito mais que os domicílios de baixa renda em outras nações.

Portanto, sim, os incentivos têm algum efeito sobre o esforço no trabalho.

Mas por que, exatamente, isso deveria ser preocupação? Ryan quer que acreditemos que a transformação da rede de seguridade social em rede de varanda é o motivo para que muitos norte-americano continuem aprisionados na pobreza. Mas as provas não afirmam coisa alguma nesse sentido.

Afinal, se o auxílio generoso aos pobres perpetuasse a pobreza, os Estados Unidos - que tratam seus pobres com muito mais dureza que os demais países ricos, e os induzem a trabalhar jornadas muito mais longas - deveriam liderar o Ocidente em mobilidade social, ou seja, na porcentagem de pessoas que nascem pobres mas conseguem ascender pelo trabalho.

Mas a realidade é exatamente a oposta: a mobilidade social é menor nos Estados Unidos do que na maioria dos demais países avançados.

E o motivo para isso não é um enigma: é difícil para os jovens avançar quando sofrem de má nutrição, assistência médica inadequada e falta de acesso a uma educação de qualidade.

Os programas de combate à pobreza que temos na verdade ajudam muita gente a subir. Por exemplo, os norte-americanos que tiveram acesso a assistência alimentar desde cedo apresentam saúde melhor e mais produtividade, nos anos futuros de suas vidas, do que aqueles que não a receberam.

Mas não fazemos o suficiente, nesses quesitos. O motivo para que tantos norte-americanos continuem aprisionados na pobreza não está em que o governo os ajude demais, mas sim em que os ajude de menos.

O que nos conduz de volta à questão da hipocrisia. De certa forma é bom ver figuras como Ryan falando sobre a necessidade de ajudar os pobres.

Mas de alguma forma suas ideias sobre ajudar os pobres envolvem cortar benefícios sociais e ao mesmo tempo reduzir os impostos dos ricos. Engraçado imaginar como isso poderia funcionar.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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