Folha de S. Paulo


Saúde, trabalho, mentiras

Na quarta-feira, Douglas Elmendorf, diretor do Serviço Orçamentário do Congresso, uma organização apartidária, declarou o óbvio: perder o emprego e optar por trabalhar menos não são a mesma coisa. Se uma pessoa perde o emprego, sofre imensas dificuldades pessoais e financeiras. Se, por outro lado, ela opta por trabalhar menos e dedicar mais tempo à família, "nós não nos compadecemos, mas sim a felicitamos".

E agora você sabe tudo que é preciso saber sobre a mais recente falsidade na campanha sempre mendaz contra a reforma da saúde nos Estados Unidos.

Recuemos um pouco. Na terça-feira, o Serviço Orçamentário do Congresso divulgou um relatório sobre as perspectivas fiscais e econômicas dos Estados Unidos, que incluía dois apêndices dedicados à Lei do Acesso à Saúde.

O primeiro apêndice não atraiu praticamente atenção alguma da mídia noticiosa, mas na realidade era uma bomba. Boa parte da discussão pública sobre a reforma da saúde (conhecida como Obamacare) continua a ser colorida pelo péssimo início do programa e presume que ele continue a ser um desastre. Houve quem apontasse que as coisas têm funcionado muito melhor, recentemente - e essa afirmação agora pode ser considerada como praticamente oficial. O relatório prevê que o número de assinaturas para os novos mercados de planos de saúde no primeiro ano do plano ficará apenas um pouco abaixo das expectativas, e que o número de norte-americanos antes desprovidos de planos de saúde que agora passarão a contar com eles ficará bem perto do previsto no segundo trimestre de 2013.

Essa boa notícia terminou abafada, no entanto, por alegações quanto ao significado do segundo apêndice sobre a reforma da saúde, que tratava da oferta de mão de obra.

Sempre esteve claro que a reforma da saúde induziria alguns norte-americanos a trabalhar menos. Algumas pessoas, por exemplo, se aposentarão mais cedo porque já não precisam continuar trabalhando só para manter seus planos de saúde. Outras reduzirão suas jornadas de trabalho para dedicar mais tempo aos filhos, porque o seguro-saúde já não está condicionado a manter um emprego de período integral. Mais sutilmente, o incentivo ao trabalho será ligeiramente reduzido por um sistema que reduz os subsídios para pagamento de planos de saúde à medida que a renda do trabalhador aumenta.

O Serviço Orçamentário do Congresso agora elevou sua estimativa quanto às dimensões desses efeitos. Acredita que a reforma da saúde reduzirá o número de horas trabalhadas na economia em entre 1,5% e 2%, e acrescenta, o que não ajuda muito, que isso "representa um declínio equivalente a cerca de dois milhões no número de trabalhadores de período integral".

Por que essa informação não ajuda muito? Porque os políticos e, sinto dizer, número exagerado de organizações noticiosas imediatamente tomaram esse número de dois milhões e distorceram horrivelmente seu significado. Por exemplo, o deputado Eric Cantor, líder da maioria republicana na Câmara, rapidamente postou no Twitter que "sob o Obamacare, milhões de norte-americanos esforçados perderão seus empregos, e aqueles que os mantiverem verão suas jornadas de trabalho e salários reduzidos".

Nenhuma palavra dessa afirmação é verdade. O relatório do Serviço Orçamentário do Congresso não afirma que pessoas perderão seus empregos. Declara explicitamente que a queda prevista no número de horas trabalhadas virá "quase inteiramente porque os trabalhadores optarão por fornecer menos mão de obra" (as aspas são minhas). E como já vimos, Elmendorf fez o melhor que pôde no dia seguinte para explicar que reduções voluntárias nas horas trabalhadas em nada se assemelham a demissões involuntárias. Oh, e porque a oferta de mão de obra cairá, os salários subirão, em lugar de cair.

Deveríamos acrescentar que o serviço orçamentário acredita que a reforma da saúde na realidade reduzirá o desemprego, nos próximos anos.

Para deixar tudo bem claro, a queda de longo prazo prevista nas horas trabalhadas não é totalmente positiva. Os trabalhadores que optarem por dedicar mais tempo à família ganharão, mas também imporão algum custo ao restante da sociedade, por exemplo ao pagar menos contribuições de seguridade social e imposto de renda. Assim, o Obamacare tem algum custo adicional, além dos subsídios aos planos de saúde. Mas qualquer tentativa de fazer as contas sugere que estamos falando de custos bastante modestos, e não dos "efeitos devastadores" que Cantor alegou em seu post no Twitter.

Isso significa que Cantor foi desonesto? Ou ele é apenas ignorante quanto a questões básicas de política pública e não se deu ao trabalho de ler o relatório antes de trombetear sua interpretação Enganosa? Não importa - porque mesmo que tenha sido por ignorância, essa ignorância é deliberada. Lembre-se: a campanha contra a reforma da saúde aproveitou, a cada momento, todo e qualquer argumento que pudesse encontrar contra estender a cobertura de saúde aos desprovidos de planos, e verdade e lógica nunca fizeram diferença.

Pense a respeito. Primeiro eles falaram dos tais "painéis da morte", que nunca existiram. Tivemos falsas alegações de que a Lei de Acesso à Saúde causaria uma explosão no deficit orçamentário. Tivemos supostas histórias de horror sobre norte-americanos comuns que teriam de arcar com aumentos imensos nos preços de seus planos de saúde, e essas histórias desabaram assim que alguém as analisou. E agora temos uma estimativa técnica bastante inócua alardeada, incorretamente, como uma história de imensos danos à economia.

Enquanto isso, a realidade é que a reforma da saúde dos Estados Unidos - por mais incompleta e falha que seja - está conquistando avanços firmes. Não, milhões de norte-americanos não perderão seus empregos, mas dezenas de milhões deles ganharão a segurança de saber que podem obter e bancar os tratamentos de saúde de que precisam.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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