Folha de S. Paulo


Ilusões de fracasso

A resposta dos republicanos ao discurso do presidente Obama sobre o Estado da União coube à deputada Cathy McMorris Rodgers, de Washington — e foi notável pela falta de conteúdo. Um pouco de detalhes autobiográficos enaltecedores, uma lista de compras das coisas bacanas que o partido dela pretende fazer — mas sem qualquer indicação de como planeja realizá-las.

O mais perto que o discurso chegou de uma declaração substanciosa foi quando Rodgers descreveu uma eleitora, "Bette, de Spokane", que supostamente estava enfrentando um aumento de US$ 700 mensais no custo de seu plano de saúde por conta do cancelamento do plano que ela tinha anteriormente. "Essa lei não está funcionando", entoou Rodgers. E temos aí uma perfeita ilustração de como os republicanos estão tentando enganar os eleitores — e, no processo, enganam a si mesmos.

Voltarei a "Bette de Spokane" adiante, mas primeiro: O Obamacare "não está funcionando", mesmo?

Todo mundo sabe sobre o desastroso lançamento do plano de reforma da saúde, mas isso aconteceu meses atrás. Desde lá, a reforma vem avançando firmemente e recuperando o terreno perdido. A essa altura, o número de inscrições nos mercados de planos de saúde está apenas um milhão de pessoas abaixo das projeções do Serviço Orçamentário do Congresso para este período, e vem subindo mais alto do que as estimativas previam. Assim, o melhor palpite é que, quando as inscrições para 2014 se encerrarem, em 31 de março, haverá mais de seis milhões de norte-americanos inscritos nos mercados de planos de saúde, ante uma projeção de sete milhões. O número de inscritos pode até atingir o total projetado.

Mas a reforma de saúde, conhecida como "Obamacare", não está sofrendo uma "espiral de morte", com adesão apenas dos idosos e das pessoas já doentes, o que em breve causará uma disparada nas mensalidades dos planos de saúde? Não de acordo com as pessoas que sabem melhor o que está acontecendo - as operadoras de planos de saúde. É verdade que uma delas, a Humana, afirma que o pool de risco é pior do que o esperado. Mas outras, entre as quais a WellPoint e a Aetna, demonstram otimismo (o que não é contradição: diferentes empresas podem estar vivendo diferentes experiências). E a Kaiser Family Foundation, que repassou os números do programa, chegou à conclusão de que mesmo que o pool de risco de uma dada seguradora tenha se deteriorado, o efeito disso sobre as mensalidades dos planos de saúde seria pequeno.

O fato é que algumas, ou talvez muitas, das pessoas que se inscreveram para os mercados de planos de saúde não estão adquirindo planos novos, mas substituindo os existentes, quer voluntariamente, quer porque os planos existentes tenham sido cancelados por não cumprirem as normas da nova lei. Mas as normas existem por um motivo - o mesmo motivo pelo qual o seguro-saúde se tornou compulsório. A reforma da saúde não funcionará caso as pessoas continuem desprovidas de planos de saúde e só decidam assinar quando adoecerem. E também não vai funcionar se as pessoas saudáveis comprarem planos de saúde só de fachada, oferecendo muito pouca cobertura.

E o que isso significa, por sua vez, é que embora ainda não saibamos quantas pessoas terão novos planos de saúde depois da reforma, sabemos que mesmo aquelas que já tinham planos de saúde estão, em média, obtendo cobertura muito melhor do que a anterior. Porque o objetivo da reforma da saúde era tornar os norte-americanos mais seguros - reduzir o risco de que não tenham como bancar seus custos de saúde, ou de que enfrentem ruína financeira caso adoeçam -, a lei está cumprindo seu papel.

O que nos conduz de volta a Bette de Spokane.

A história de Bette intrigou os especialistas em políticas públicas; era difícil compreender, dado o que conhecemos quanto às mensalidades de planos de saúde e a maneira pela qual o Obamacare funciona, como alguém podia enfrentar aumento tão salgado em suas mensalidades. E quando por fim um jornal local, o "Spokesman-Review", entrou em contato com Bette Grenier, descobriu que a história real era muito diferente da contada pela deputada Rodgers. Para começar, ela estava comparando seu plano anterior a uma das alternativas mais caras oferecidas por sua seguradora - e se recusava a procurar alternativas mais baratas no mercado de planos de saúde do Estado de Washington, declarando que "eu não vou usar aquele site de Obama".

O mais importante é que, antes, Grenier e seu marido tinham um plano de saúde mínimo, com franquia de US$ 10 mil, e oferecendo muito pouca proteção financeira. E, desse modo, sim, a nova lei requer que eles gastem mais, mas receberão cobertura muito melhor em retorno.

Será que essa é a melhor história que Rodgers conseguiu encontrar? A resposta é provavelmente afirmativa, porque todas as histórias de horror que o Partido Republicano tentou difundir sobre a reforma da saúde foram igualmente desmanteladas assim que os detalhes se tornaram públicos. A verdade é que a campanha contra o Obamacare depende na melhor das hipóteses de histórias enganosas, e muitas vezes de trapaça escancarada.

E quem paga o preço por essa trapaça? Em muitos casos, as famílias norte-americanas. Ainda que as inscrições para os novos planos de saúde estejam indo bem a essa altura, milhares e talvez milhões de norte-americanos deixaram de assinar um plano por acreditarem nas falsas de histórias de horror que lhes são contadas ininterruptamente.

Mas os políticos conservadores não estão apenas enganando seu eleitorado: estão se enganando. No momento, a estratégia política republicana parece ser a de bloquear todas as questões e colher a recompensa quando o Obamacare inevitavelmente desabar. Bem, o desabamento não está acontecendo - o Obamacare vem se recuperando muito bem de seu péssimo começo. E quando a direita perceber essa realidade, a reforma da saúde já será irreversível.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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