Folha de S. Paulo


Escândalo na França

Não dediquei muita a atenção a François Hollande, o presidente da França, desde que ficou claro que ele não romperia com a destrutiva ortodoxia da austeridade que domina o pensamento da Europa. Mas agora ele fez algo de verdadeiramente escandaloso.

Não estou, é claro, falando de seu suposto caso com uma atriz, o qual, mesmo que verdadeiro, não é nem surpreendente (ei, estamos falando da França) e nem preocupante. Não, o que ele fez de chocante foi adotar desacreditadas doutrinas econômicas de direita, e isso serve como lembrete de que os problemas econômicos continuados da Europa não podem ser atribuídas apenas às más ideias da direita. Sim, conservadores insensíveis e teimosos vêm conduzindo a política econômica, mas o trabalho deles foi permitido e facilitado pelos políticos confusos e frouxos da esquerda moderada.

No momento, a Europa parece estar emergindo de sua recessão de duplo mergulho, e crescendo um pouco. Mas essa ligeira alta se segue a anos de desempenho desastroso. Desastroso a que ponto? Considere: em 1936, sete anos depois do início da Grande Depressão, boa parte da Europa estava crescendo rapidamente, e a renda per capita estava batendo novos recordes. Em contraste, a renda per capita europeia atual está ainda bem abaixo de seu pico em 2007 - e cresce apenas lentamente, nos melhores casos.

Apresentar desempenho pior que o da Grande Depressão é uma realização notável, seria possível afirmar. Como os europeus conseguiram essa façanha? Bem, nos anos 30 a maioria dos países europeus terminou por abandonar a ortodoxia econômica: eles desistiram do padrão ouro, pararam de tentar manter o equilíbrio em seus orçamentos, e alguns iniciaram grandes expansões de suas forças armadas que tinham como efeito colateral um estímulo à economia. O resultado foi uma forte recuperação, de 1933 em diante.

A Europa moderna é um lugar melhor, em termos morais, políticos e humanos. O compromisso compartilhado para com a democracia trouxe uma paz duradoura; redes de seguridade social limitaram o sofrimento causado pelo desemprego elevado; ações coordenadas detiveram a ameaça do colapso financeiro. Infelizmente, o sucesso do continente em evitar desastres tem o efeito colateral de permitir que os governos se apeguem a políticas ortodoxas. Ninguém abandonou o euro, ainda que ele represente uma camisa de força monetária. Já que não existe necessidade de ampliar os gastos militares, ninguém rompeu com a austeridade fiscal.

Todo mundo está fazendo o que é seguro e supostamente responsável - mas a desaceleração persiste. Nessa passagem deprimida e deprimente, o desempenho da França não é especialmente ruim. Obviamente o país está atrás da Alemanha, que conta com o empuxo de seu formidável setor exportador. Mas o desempenho francês foi melhor que o da maioria das demais nações europeias. E não estou falando apenas dos países que enfrentam crises de dívida. O crescimento da França ultrapassou até o de pilares da ortodoxia como a Finlândia e Holanda.

É verdade que os mais recentes dados demonstram que a França não está compartilhando da alta generalizada no crescimento europeu. A maioria dos observadores, entre os quais o FMI (Fundo Monetário Internacional), atribuem essa fraqueza recente em larga medida às políticas de austeridade. Mas agora Hollande falou sobre seus planos para mudar o rumo da França - e é difícil não sentir uma sensação de desespero.

Pois Hollande, ao anunciar sua intenção de reduzir os impostos pagos pelas empresas e ao mesmo tempo cortar gastos (não especificados) para compensar o custo, declarou que "é sobre a oferta que precisamos agir", e declarou, além disso, que "a oferta na realidade cria demanda".

Rapaz... Isso ecoa quase textualmente a falácia da Lei de Say, há muito provada falsa - a alegação de que é impossível acontecer uma escassez geral de procura, porque as pessoas precisam gastar sua renda em alguma coisa. Isso simplesmente não é verdade, e é especialmente não verdade, de um ponto de vista muito prático, no começo de 2014. Todas as indicações são de que a França está repleta de recursos produtivos, tanto em termos de mão de obra quanto de capital, mas que eles estão ociosos porque a procura é inadequada. Como prova, basta considerar a inflação, que está caindo rapidamente. De fato, tanto a França quanto a Europa como um todo estão se aproximando perigosamente de uma deflação ao estilo japonês.

Assim, qual é a importância de Hollande ter, justo agora, adotado essa desacreditada doutrina?

Como eu disse, é um sinal da inépcia da centro-esquerda europeia. Há quatro anos a Europa está sob o domínio de uma febre de austeridade, com resultados no geral desastrosos; é revelador que a ligeira alta de crescimento registrada recentemente esteja sendo alardeada como um triunfo para essa política econômica. Dadas as dificuldades que essas políticas impuseram, seria de esperar que os políticos de centro-esquerda estivessem defendendo vigorosamente uma mudança de curso. Mas em toda a Europa, a centro-esquerda (por exemplo a britânica) ofereceu apenas críticas fracas e desanimadas a elas, e muitas vezes simplesmente se submeteu sem protestar.

Quando Hollande se tornou o líder da segunda maior economia da zona do euro, alguns de nós esperávamos que ele talvez se posicionasse contra a ortodoxia. Mas ele terminou por se submeter, como de hábito - e essa submissão agora se tornou um colapso intelectual. Enquanto isso, a segunda depressão europeia continua, e continua.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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