Folha de S. Paulo


Por que a desigualdade importa

A crescente desigualdade não é uma preocupação nova. "Wall Street", filme de Oliver Stone que retratava a ascensão de plutocratas que insistiam que cobiça é boa, foi lançado em 1987.

Mas os políticos, intimidados pelos resmungos de "luta de classes", optaram por não transformar a crescente disparidade entre os ricos e os demais cidadãos norte-americanos em causa importante.

Isso talvez esteja mudando, no entanto. Podemos argumentar sobre a importância da vitória de Bill de Blasio na disputa pela prefeitura de Nova York, ou sobre o apoio da senadora Elizabeth Warren à expansão da previdência social.

E ainda não sabemos se a declaração do presidente Obama de que "a desigualdade é o desafio que define nossa era" se traduzirá em mudanças de política. Mas os termos da discussão mudaram o suficiente para produzir reação adversa dos sabichões, segundo os quais a desigualdade não é tão importante.

Eles estão errados.

O melhor argumento para deixar de lado a desigualdade, em termos de prioridade política, é o estado da economia. Não seria mais importante restaurar o crescimento econômico do que nos preocuparmos com a distribuição dos ganhos propiciados pelo crescimento?

DESIGUALDADE

Bem, não. Primeiro, se você observar apenas o impacto direto da crescente desigualdade sobre os norte-americanos de classe média, perceberá que ela importa, e muito.

Além disso, a desigualdade provavelmente desempenhou papel importante em criar a bagunça econômica que vivemos, e desempenhou papel crucial em nosso fracasso quanto a corrigi-la.

Comecemos pelos números. Em média, os norte-americanos continuam muito mais pobres hoje do que eram antes da crise econômica. Para os 90% de famílias mais pobres, esse empobrecimento reflete tanto a diminuição no tamanho do bolo econômico quanto uma redução na fatia do bolo que cabe a cada uma delas.

Qual dos dois fatores importa mais? A resposta, surpreendentemente, é que as duas coisas são mais ou menos comparáveis - ou seja, a desigualdade vem crescendo tão rápido que, nos últimos seis anos, causou tanto arrasto nas rendas dos norte-americanos comuns quanto o mau desempenho da economia, ainda que o período tenha incluído a pior desaceleração na economia dos Estados Unidos desde a década de 30.

E se você adotar uma perspectiva mais longa, a crescente desigualdade se torna o mais importante fator por trás da renda deprimida da classe média.

Além disso, se você tentar compreender tanto a Grande Recessão como a nem tão grande recuperação que se seguiu a ela, os impactos econômicos e, acima de tudo, políticos da desigualdade têm peso muito grande.

DÍVIDA

Quase todos aceitam, agora, que a crescente dívida dos domicílios norte-americanos ajudou a preparar o terreno para nossa crise econômica. A alta na dívida coincidiu com a crescente desigualdade, e é provável que as duas coisas estejam relacionadas (ainda que essa relação causal não tenha sido estabelecida de forma irrefutável).

Depois que começou a crise, a transferência constante de renda da classe média em direção a uma pequena elite causou queda de consumo, o que demonstra que a desigualdade está vinculada tanto à crise econômica quanto à fraqueza da recuperação que se seguiu a ela.

Em minha opinião, porém, o papel realmente crucial da desigualdade para a calamidade econômica foi exercido na arena política.

Nos anos anteriores à crise, havia um notável consenso bipartidário em Washington em favor da desregulamentação financeira - consenso que nem a teoria e nem a História justificavam.

Quando a crise surgiu, houve uma corrida para resgatar os bancos. Mas tão logo isso foi realizado, emergiu um novo consenso, que envolvia abandonar a criação de empregos e concentrar as atenções do país na suposta ameaça do deficit orçamentário.

ELITE

O que os consensos anterior e posterior à crise têm em comum? Os dois são economicamente destrutivos. A desregulamentação ajudou a tornar a crise possível, e a virada prematura na direção da austeridade fiscal fez mais do que qualquer outra coisa para prejudicar a recuperação.

Os dois consensos, porém, correspondiam aos interesses e preconceitos de uma elite econômica cuja influência política disparou em companhia de seu patrimônio.

Isso fica especialmente claro se tentarmos compreender por que Washington, em meio a uma crise continuada de emprego, de alguma forma se deixou obcecar pela suposta necessidade de cortes na previdência social e no programa federal de saúde Medicare.

Essa obsessão jamais fez sentido economicamente: em uma economia deprimida e com juros em recorde de baixa, o governo deveria gastar mais, e não menos, e uma era de desemprego não é momento para concentrarmos nossa atenção em um problema fiscal que explodirá décadas no futuro. E os ataques a esses programas tampouco refletiam uma demanda popular.

Pesquisas de opinião entre os muito ricos demonstram, no entanto, que eles, ao contrário do público geral, consideram o deficit orçamentário como questão social e favorecem grandes cortes nos programas de seguridade social. E não poderia ser mais evidente que as prioridades da elite dominaram nosso discurso político.

O que me conduz ao meu último ponto. Por sob algumas das reações ao interesse ressurgido na desigualdade, existe, acredito, o desejo de muitos sabichões de despolitizar nosso discurso econômico, tornando-o tecnocrático e apartidário.

Mas esse é um sonho irrealizável. Até mesmo quanto a questões que podem parecer puramente tecnocráticas, o debate termina por ser determinado, e distorcido, pela desigualdade e pelas preocupações de classe.

Assim, o presidente estava certo. A desigualdade é, de fato, o desafio que define nossa era. Faremos alguma coisa para enfrentá-lo?

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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