Folha de S. Paulo


Tirando comida da boca de crianças

Como muitos observadores, a leitura de artigos sobre os mais recentes fatos políticos geralmente me provoca uma espécie de cinismo cansado. Mas de vez em quando os políticos cometem algo tão errado, substantiva e moralmente, que não basta ter uma atitude de cinismo --é preciso se indignar realmente. É o caso da guerra repugnante e destrutiva contra o auxílio-alimentação.

O programa de auxílio-alimentação --que hoje em dia utiliza cartões de débito e é conhecido oficialmente como Programa de Assistência à Nutrição Suplementar-- visa dar ajuda modesta, mas crucial às famílias necessitadas. E há evidências cristalinas de que a imensa maioria das famílias que recebem esse auxílio realmente precisa dele e que o programa é extremamente bem-sucedido na redução da chamada "insegurança alimentar", a situação em que famílias passam fome pelo menos parte do tempo.

O auxílio-alimentação vem exercendo um papel especialmente útil --na verdade, quase heroico nos últimos anos. Na realidade, vem exercendo um papel triplo.

Primeiro, quando milhões de trabalhadores perderam seus empregos por motivos que não estavam sob seu controle, muitas famílias recorreram ao auxílio-alimentação para subsistir --e, embora o auxílio não substitua um bom emprego, mitigou a miséria deles consideravelmente. O auxílio-alimentação foi especialmente importante para crianças que, de outro modo, estariam vivendo na pobreza extrema, definida como uma renda que não chega à metade da linha oficial da pobreza.

Mas há mais. Por que nossa economia está deprimida? Porque muitos atores da economia reduziram seus gastos ao mesmo tempo, enquanto relativamente poucos se dispuseram a gastar mais. E, porque a economia não é como uma família comum --seus gastos são minha receita, meus gastos são a sua receita--, o resultado foi uma queda geral nas receitas e no emprego.

Precisávamos desesperadamente (e ainda precisamos) de políticas públicas de promoção de aumentos temporários nos gastos --e a ampliação do programa de auxílio-alimentação, que ajuda as famílias extremamente carentes, permitindo que gastem mais com outras necessidades básicas, é uma política que se encaixa exatamente nesse perfil.

Na verdade, estimativas da firma de consultoria Moddy's Analytics sugerem que cada dólar gasto com auxílio-alimentação numa economia deprimida eleva o PIB em cerca de US$1,70 --o que, por sinal, significa que boa parte do dinheiro gasto para auxiliar famílias necessitadas acaba revertendo ao governo sob a forma de receita mais alta.

Espere, ainda não terminamos. O auxílio-alimentação reduz em muito a insegurança alimentar de crianças de baixa renda, o que, por sua vez, favorece em muito as chances delas de se saírem bem na escola e crescerem para tornarem-se adultas bem-sucedidas e produtivas. Portanto, o auxílio-alimentação é, em sentido muito real, um investimento no futuro da nação --investimento que, no longo prazo, quase certamente reduz o déficit orçamentário, porque os adultos de amanhã serão também os contribuintes de amanhã.

E o que os republicanos querem fazer com este programa governamental exemplar? Primeiro reduzi-lo e depois, concretamente, eliminá-lo.

A parte de reduzir o programa vem com a lei agrícola mais recente proposta pelo Comitê de Agricultura da Câmara (por razões históricas, o programa de auxílio-alimentação é administrado pelo Departamento Agrícola). Essa lei, se aprovada, tirará cerca de 2 milhões de pessoas do programa. Vale lembrar que um efeito dos cortes orçamentários vem sendo ameaçar seriamente um programa distinto, mas relacionado, que garante auxílio nutricional a milhões de gestantes, bebês e crianças. Assegurar que a próxima geração cresça com deficiências nutricionais --isso sim é o que eu chamo de pensamento voltado ao futuro.

E por que o auxílio-alimentação precisa ser cortado? Não podemos arcar com seu custo, dizem políticos como o deputado republicano Stephen Fincher, do Tennessee, que citou a Bíblia para fundamentar sua posição --e que também, como veio à tona, recebeu pessoalmente milhões de dólares em subsídios agrícolas ao longo dos anos.

Mas esses cortes são apenas o início do ataque frontal contra o auxílio-alimentação. Lembre-se que o orçamento proposto pelo deputado Paul Ryan ainda é a posição oficial do Partido Republicano sobre a política fiscal, e esse orçamento prevê a conversão do auxílio-alimentação em um programa de doações em bloco, com gastos fortemente reduzidos.

Se essa proposta tivesse estado em vigor quando aconteceu a Grande Recessão, o programa de auxílio-alimentação não poderia ter crescido como cresceu, o que teria significado muito mais sofrimento, incluindo muita fome, para milhões de americanos, em especial crianças.

Eu entendo a lógica suposta: estamos virando um país de pessoas que dependem de ajuda, e fazer coisas como alimentar crianças pobres e lhes proporcionar saúde adequada está simplesmente criando uma cultura de dependência --e é essa cultura de dependência que de alguma maneira causou nossa crise econômica, não os banqueiros fora de controle.

Me pergunto, porém, se mesmo os republicanos acreditam realmente nisso --ou se, pelo menos, têm confiança suficiente em seus diagnósticos para justificar políticas que mais ou menos literalmente arrancam comida das bocas de crianças famintas. Como eu disse, há momentos em que o cinismo não é suficiente. Este é um momento para muita, muita indignação.

Tradução de CLARA ALLAIN


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