Folha de S. Paulo


Violência no Rio reforça necessidade de incorporar a visão da periferia

Tudo o que acontece no Rio ganha ressonância porque aconteceu no Rio. Repete-se com frequência o argumento de que há uma espetacularização da violência na cidade. O Atlas da Violência aponta que o Rio está na 133ª colocação entre as cidades mais violentas do país. Mas não são poucos os que a associam ao título de campeã nacional da criminalidade.

Após sediar a final da Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, cume de anos que pareciam de bonança, a maré virou. O país entrou em recessão, o Estado faliu, e a prefeitura da cidade contraiu ao máximo seus investimentos. Nesse cenário crítico, após dez anos de melhoras nos índices de criminalidade, a insegurança se alastrou.

Duas semanas atrás, ao assustar a rica zona sul do Rio, a violência adquiriu contornos de crise aguda.

O primeiro sinal de que a situação degringolaria não foi percebido pela Folha. O tiroteio começou na madrugada de domingo, 17 de setembro. De manhã, a Rocinha seria palco aberto de enfrentamento entre traficantes de grupos que concorrem pela domínio da venda de drogas. A primeira página da Folha de segunda, 18, ignorou o episódio.

Nas edições que se seguiram, as reportagens publicadas não conseguiam trazer a dimensão do problema. Como afirmei em crítica interna, o caso da Rocinha merecia atenção especial, por simbolizar o recrudescimento das facções criminosas na ocupação de território que deveria ser controlado pelo Estado.

Na sexta, 22, as Forças Armadas foram chamadas e cercaram a Rocinha. A Folha pareceu despertar e ofereceu ao leitor edição bem melhor. Encorpou a cobertura e fez investimentos editoriais de destaque.

A imprensa seguiu linhas semelhantes ao buscar especialistas em segurança para explicarem o que estava acontecendo e o que poderia ser feito. Tentou ser mais analítica do que factual. Sem sucesso.

Pouco criativa, a cobertura repetiu o roteiro de outras crises de segurança. Os leitores parecem cansados dos mesmos fatos e dos mesmos especialistas.

A cobertura pecava por depender de fontes oficiais e ter pouco acesso ao local de enfrentamento e às pessoas que residem no entorno.

Um dos diferenciais da Folha apareceria na segunda, 25, ao publicar o depoimento do escritor Geovani Martins, morador da Rocinha.

O leitor Guilherme Braga Alves escreveu que o artigo era "brilhante" e que, em poucos parágrafos, fora capaz de dizer mais do que uma semana de reportagens. A iniciativa foi tardia, mas louvável.

Morador de Campo Grande, na zona oeste, o leitor criticou a cobertura da Folha pelo viés centrado "na vida de quem mora no asfalto, na zona sul, na vida de quem só passa pela Rocinha quando cruza o túnel para ir ou vir da Barra da Tijuca". Apontou que são invisíveis para a imprensa casos de violência em favelas das zonas norte e oeste.

O leitor concluiu: "A Folha orgulha-se da pluralidade e da centena de comentaristas que escrevem regularmente em suas páginas. Como o caso da Rocinha mostrou, essa pluralidade ainda não é suficiente. Para que a Folha seja um retrato do Brasil, é preciso que as favelas e subúrbios componham sua voz. Que inclua no seu quadro de articulistas alguém capaz de trazer essa visão".

A cobertura de segurança pública patina na imprensa brasileira.

Com 60 mil assassinatos por ano e 600 mil presos guardados num dos maiores sistemas penitenciários do mundo, a cobertura de segurança não deveria pautar-se apenas pelos momentos de extrema violência e de rebeliões. O desafio maior é cobrir o setor fora das crises, segundo afirma Silvia Ramos, especialista em segurança e competente analista de mídia.

"Incorporar os jovens de periferias como narradores do cotidiano da violência urbana me parece essencial para renovar a cobertura dos grandes jornais", chancela Ramos.

É preciso buscar propostas novas de enfoques e temas para qualificar a cobertura da epidemia de violência também fora das crises.

Registre-se que a Folha tem adotado uma política editorial elogiável de não cobrir a violência no varejo e investir em reportagens mais aprofundadas que buscam dar ao leitor mais do que o simples relato dos fatos. Mas ainda é pouco.

Nesse caso, reagiu de modo discreto e lento aos sinais de agravamento da insegurança. O fato de não estar sediada no Rio nem ter lá sua base de leitores por si só afasta o jornal do lugar. A decisão de fechar a Sucursal do Rio, em 2016, e limitar a uma equipe de cinco correspondentes a cobertura da segunda maior cidade do Brasil tem cobrado alto preço editorial.

Como se fosse uma travessura do destino, desde então o Rio é protagonista de uma série de fatos importantes, entre os quais desdobramentos da Operação Lava Jato, cuja apuração acaba prejudicada.

O Rio hoje é mercado de informação quase monopolizado pelo Grupo Globo. A Folha atrai leitores cariocas em busca de maior diversidade de enfoques, mas tem oferecido a eles material limitado.


Endereço da página:

Links no texto: