Folha de S. Paulo


Lá como cá, no rastro de palavras

Carvall/Folhapress

O confronto violento entre grupos racistas e antirracistas numa pequena cidade do sul dos Estados Unidos tornou-se tema de debate mundial desde o fim da semana passada. Parece ter sido a explosão localizada de tensão com potencial para se alastrar pelo mundo.

Os melhores jornais e analistas da imprensa norte-americana têm-se concentrado no papel vitalizador do presidente Donald Trump em relação ao ambiente radical em que nasceu esse confronto. A responsabilidade e a influência da mídia nesse cenário também estão em questão.

O republicano é criticado, até por membros de seu partido, por ter igualado os chamados "supremacistas brancos" àqueles que protestaram contra eles. Para ele, havia "algumas pessoas muito boas" em ambos os lados.

No campo específico do jornalismo brasileiro, tenho dois comentários a fazer. O primeiro diz respeito ao termo "supremacista" e o segundo refere-se ao estímulo ao ambiente preconceituoso e racista.

A primeira menção na Folha à palavra "supremacistas" –até onde pude pesquisar– é de 5 de julho de 1965, em coluna publicada na "Ilustrada". O correspondente em Nova York Wilson Velloso comentava a emigração de famílias da Virgínia para a África do Sul. Foi a única vez que o jornal publicou a menção a supremacistas na década de 1960, marcada pela luta em defesa dos direitos civis nos Estados Unidos.

As menções se multiplicaram nos anos 2000, principalmente a partir do atentado de 11 de setembro. Está em reportagem de página inteira, em 15 de junho de 2014, sobre o aumento dos grupos de ódio nos EUA desde 2000, que ampliavam seus alvos além dos negros.

Entre 2014 e 2015, a palavra "supremacistas" é citada mais vezes do que havia sido nos 60 anos anteriores. Chega à capa do jornal em 13 de novembro de 2016, nas explicações para a vitória de Donald Trump: "Supremacistas brancos celebram eleição e esperam ter influência". Desde então o termo se espalhou na Folha, ultrapassando 30 menções em menos de um ano.

Concordo com o colunista Janio de Freitas, que, em 17 de agosto, defendeu que o uso da palavra "supremacistas" provoca atenuação das aparências. Janio argumentou que não há razão para acobertar o racismo, com um subterfúgio que só presta serviço aos racistas. "Supremacismo é palavra antijornalística pela imprecisão, pela utilidade deformadora e por sua hipocrisia."

À luz do que o colunista escreveu, a Folha considerou mais apropriado, em especial para a compreensão do público brasileiro, adotar prioritariamente os vocábulos derivados da palavra "racismo".

SUPEREXPOSIÇÃO E EQUIVALÊNCIA

Parte da imprensa norte-americana tem apontado como um dos erros recentes e graves dos veículos de comunicação a adoção de uma "falsa equivalência" durante a campanha presidencial de 2016. Outros críticos questionam o excesso de exposição dado a ultranacionalistas.

A crítica de mídia do "Washington Post", Margaret Sullivan, afirma que "o sentimento de justiça equivocada dos meios de comunicação nacionais ajudou a equiparar falhas graves de Hillary Clinton com males desqualificadores de Donald Trump".

Estudo da Universidade de Harvard concluiu que o tratamento da mídia estava cheio de falsas equivalências durante a eleição.

Issie Lapowsky escreveu na "Wired" que a imprensa vive o dilema entre ignorar grupos radicais, permitindo que uma potencial ameaça pública não seja denunciada, e colocar muita luz sobre eles, arriscando ampliar seus seguidores.

A agressão a um ambulante sírio nas ruas do Rio de Janeiro, a discussão nas redes sociais sobre ser o nazismo de direita ou de esquerda ou os ataques racistas em jogos de futebol são provas recentes de que o país já é afetado pela intolerância crescente. E de que, no contraponto da superexposição, pouco se noticiam sinais de intolerância, como os ataques corriqueiros a centros de umbanda e candomblé pelo país.

Na eleição presidencial de 2018, o enfrentamento da questão da falsa equivalência será decisivo para a qualidade da cobertura. Até o momento, um único pré-candidato que se mostrou favorável a Donald Trump: Jair Bolsonaro (PSC-RJ).

Visto como presidenciável em ascensão nas pesquisas, o deputado federal é defensor do militarismo, da ampliação do uso de armas por cidadãos de um país com recorde de homicídios e da castração química para estupradores, além de colecionar dezenas de declarações homofóbicas, racistas e sexistas.

Como será a cobertura de sua candidatura, de modo que seja imparcial, mas não deixe de ser contundente? Não estará sendo exagerada a exposição dada ao candidato e a seus simpatizantes?

Os jornalistas precisam ser os demolidores do que se chamou de "pós-verdade" e das notícias falsas. Não podem ser ingênuos nem reproduzir declarações e narrativas acriticamente, sem investigação profunda e correlação com dados e fatos históricos. O jornalismo necessita ser imparcial, preciso e contundente, como os tempos absurdos exigem.


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