Folha de S. Paulo


A crueldade dos grandes momentos

Editoria de Arte/Folhapress
Placar da votação,com fotos dos deputados,ocupa uma página no
Placar da votação,com fotos dos deputados, ocupa uma página no "Estado" (à dir.) e duas na Folha

A definição é do jornalista Cláudio Abramo (1923-87), figura símbolo do jornalismo brasileiro e da Folha, em especial: "Um grande jornal se conhece nos grandes momentos".

Abramo tinha regras simples para o bom jornalismo: escrever de maneira compreensível, cumprir os horários, renovar-se continuamente, porque um jornal é fruto da criatividade intelectual e artística. Sua definição de grande jornal pode parecer acaciana para leitores, mas os integrantes de uma redação sabem o tamanho do desafio que contém.

A reflexão de Abramo veio à tona ao conversar sobre a cobertura da imprensa do momento histórico vivido na semana passada. Pela primeira vez um presidente foi acusado de crime de corrupção no exercício do cargo, mas a investigação de seus atos foi sustada pelo voto de 51% dos deputados.

Para o país, foi um episódio triste, quase vergonhoso. Para os jornalistas, era um grande momento.

A comparação das edições digitais e impressas dos três principais jornais do país –Folha, "O Globo" e "O Estado de S. Paulo"– com a cobertura da sessão da Câmara dos Deputados sobre a denúncia por corrupção contra o presidente Michel Temer, em 2 de agosto, impressiona pela indiferenciação.

É claro que havia um ou outro detalhe que podia ser apontado como "diferencial", mas não havia nada que se destacasse.

A pasteurização editorial revelou-se já no dia da apresentação da votação na Câmara. Pulularam relatos quase idênticos da ofensiva final do Planalto, infográficos com os detalhes da votação, especulava-se sobre a estratégia da oposição e todos conduziram enquetes com os parlamentares sobre seu posicionamento a respeito da denúncia.

No dia seguinte, páginas se repetiram: quadros com o resultado da votação, narrativas da ação de ministros cabulando votos no plenário, bate-bocas, empurra-empurra e cenas constrangedoras.

Como tem acontecido em momentos recentes, a Folha foi graficamente mais discreta –menosprezando o caráter inédito da votação–, e "O Globo", mais exagerado. Conservador por tradição, "O Estado de S. Paulo" manteve-se no meio termo.

A questão de fundo é a dificuldade dos jornais em diversificar pautas e abordagens na era de fatos políticos quentes, transmitidos ao vivo pela internet e pela TV por horas a fio, com a saturação de análises e comentários.

A cobertura em tempo real, até pela TV Globo, torna o jornal impresso e mesmo as edições digitais irrelevantes, a menos que consigam oferecer algo que a TV não pode dispor. Muitos textos se concentram no passado e no presente imediato, sendo ineficientes na tentativa de explicação do futuro.

Os jornais se esforçaram para demonstrar o quanto custou financeiramente para o país a vitória de Temer. Não foram efetivos em identificar com precisão, no entanto, quem ganhou quanto ou o quê. Se bem-sucedida a investigação, seria uma enorme diferenciação das emissoras de TV.

Outro tema ausente foi a análise de como o país prostrou-se perante o resultado. Desde junho de 2013, as origens, demandas e dimensões das manifestações de rua são incógnitas para a imprensa. A quase inexistência de protestos no dia da votação foi ignorada pela Folha.

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Publicada em uma página, enquete registra mais deputados contra Temer
Publicada em uma página, enquete registra mais deputados contra Temer

A questão das enquetes merece apreciação mais detalhada. Esses levantamentos já foram mais importantes e informativos. Em tese, possuem evidente caráter de prestação de serviço, supostamente para que o (e)leitor acompanhe (e pressione) o seu deputado.

No caso da votação da denúncia contra Temer, as enquetes tinham pequenas diferenças, chegaram a resultados semelhantes entre si, mas se mostraram irreais, indo na direção contrária do que os próprios jornais tinham apurado. Todas registravam um número maior de parlamentares a favor da aceitação da denúncia, o que, como se viu, esteve longe de acontecer.

A Folha já foi tida como insuperável nas grandes coberturas. Por motivos variados, tal supremacia não tem se confirmado. Outros tempos, outros desafios.

Se o jornal é hoje mais lido em sua versão digital do que em sua versão impressa, a cobertura online merece mais atenção para competir de fato com a TV e com os inúmeros concorrentes digitais. Investimento e definição de prioridades são necessidades imediatas.

Afinal, vive-se a era do jornalismo instantâneo. O resultado até aqui não tem sido dos mais favoráveis. Os grandes momentos são cruéis. É preciso não ser pequeno e se preparar melhor para enfrentá-los.


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