Folha de S. Paulo


As faces da cracolândia

Danilo Verpa - 02.jun.2017/Folhapress
SAO PAULO - SP - 02.06.2017 - Usuario fuma crack na nova cracolandia na praca Princesa Isabel. Movimentacao na Praca Princesa Isabel, centro de Sao Paulo, onde se formou a nova cracolandia. (Foto: Danilo Verpa/Folhapress, COTIDIANO) ***ESPECIAL ***EXCLUSIVO FOLHA***
Usuario fuma crack na nova cracolândia, na praca Princesa Isabel, em São Paulo

Eles estão dispersos na grande praça, sob frio e chuva. Envoltos por cobertores e trapos, aqueles homens -em sua maioria- e mulheres têm sido alvo diuturno de câmeras fotográficas que buscam registrar uma das maiores tragédias paulistanas do século 21. Não têm direito algum, nem mesmo à intimidade.

A polícia de São Paulo montou em 21 de maio uma de suas maiores operações para combater o tráfico de drogas na chamada cracolândia. Após repressão e violência, centenas de usuários de drogas deixaram a alameda Dino Bueno e a rua Helvetia. Aglomeraram-se então na praça Princesa Isabel, sujeitos a ações descoordenadas das administrações municipal e estadual.

Na documentação dos acontecimentos, a Folha publicou, com destaque e por repetidas vezes, imagens de usuários se drogando a céu aberto. O jornal reincidiu em erro.

Em 2011, a ombudsman Suzana Singer condenou a publicação de uma sequência de fotos, na primeira página da Folha, que mostrava um homem de terno comprando, preparando e fumando o que parecia ser um cachimbo de crack em rua da cracolândia.

A Secretaria de Redação argumentou que haviam sido discutidos os possíveis malefícios que a exposição traria à vida do retratado, mas que "o interesse público da reportagem fotográfica, de mostrar que o fenômeno do crack não se confunde com pobreza e não atinge apenas moradores de rua, prevaleceu na decisão de publicar as imagens". No entanto, informava que tal política estava "sob discussão".

Seis anos depois, o problema da cracolândia continua, e o jornal mostrou-se viciado na solução fácil da exposição de pessoas doentes. É possível fazer imagens de impacto e noticiosas, de forma que os personagens não sejam reconhecidos.

O secretário de Redação da Folha, Vinicius Mota, justificou: "O tráfico e o consumo de drogas a céu aberto, em espaços públicos, são um fato incontornável na cobertura da cracolândia. A exposição eventual de pessoas adultas (para os menores há proteção legal, obedecida pelo jornal) nessas situações, embora não seja um objetivo das reportagens, parece inevitável. Soaria artificioso e até censório adotar procedimentos para apagar a identidade visual de consumidores e traficantes eventualmente expostos nas imagens dessa cobertura".

A justificativa parte de raciocínio, a meu ver, simplista, segundo o qual o jornal relata acontecimentos sem que tenha responsabilidade na narrativa e nas imagens que escolheu.

Haverá quem diga que é certo, que a exposição de usuários pode salvá-los. Foi o que se deu com um homem que, reconhecido por colegas de escola no Rio, acabou resgatado por eles e com a mãe que foi buscar o filho após reportagem da Folha. Nesse último caso, o homem pediu para ser filmado e manifestou o desejo de sair da cracolândia.

É situação diferente daquela em que se encontram outros, tão afundados na droga que não podem nem sequer manter mínima conversação.

Segundo o Datafolha, 80% dos paulistanos são a favor da internação de dependentes mesmo contra a vontade deles. Sobre a ação policial de maio, 59% se declararam a favor de sua realização; na avaliação de 53%, no entanto, houve violência. Para 62%, o uso da força foi adequado ou aquém do necessário.

O tema tem sido prioritário e, acertadamente, vem merecendo investimento do jornal. É notório, porém, que há um descolamento entre o que deseja a maioria da população como solução e as propostas apresentadas pelos especialistas, reverberadas pelo jornal.

Alguns leitores acusam a Folha de parcialidade em sua abordagem. O leitor Lavoisier Castro comentou que as análises publicadas eram todas contrárias às ações anticrack. "Por que tanto desespero em desqualificar essa ação de enfrentamento contra o tráfico de drogas?" De fato, há poucas vozes divergentes. É possível problematizar mais, abrir o leque de entrevistados e ir além do sou contra/a favor.

O secretário de Redação Vinícius Mota afirma que o objetivo da Folha é ser equilibrada. "A nossa avaliação é que estamos cumprindo o objetivo, embora ainda haja muitos assuntos e acontecimentos a tratar nesse tema complexo."

Dois prefeitos de São Paulo em menos de dez anos —-Gilberto Kassab em fevereiro de 2008 e João Doria no mês passado— já decretaram o fim da cracolândia. O dia seguinte os desmentiu.

Como enfatizou o médico Drauzio Varella, a cracolândia é apenas um aspecto de problemas mais complexos. "Todo o mundo tem que se convencer de que não é possível acabar com a cracolândia. Ela não é causa de nada. É consequência de uma ordem social que deixa à margem da sociedade uma massa de meninos e meninas nas periferias nas cidades, sem oportunidade."

Há quem discorde de tal avaliação. O direito à dignidade e ao atendimento de saúde são valores humanistas São espécie de cláusula pétrea de sociedades desenvolvidas e justas, às quais o jornalismo tem de se apegar.


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