Folha de S. Paulo


O sigilo da fonte e a fonte do sigilo

Carvall/Folhapress
ilustra ombu

A divulgação indevida de conversas de um jornalista com sua fonte criou momento raro de unanimidade num país cada vez mais dividido. Não houve voz -de esquerda ou de direita, independente ou tradicional, conservadora ou liberal- que não condenasse o que se caracterizou como uma quebra do sigilo de fonte dos jornalistas, sendo este garantido pela Constituição.

A Polícia Federal realizou escutas telefônicas em conversas de Andrea Neves, irmã do senador tucano Aécio Neves, investigado por operações suspeitas com o grupo JBS.

Em um dos telefonemas grampeados, Andrea falava com o jornalista Reinaldo Azevedo -colunista da Folha e até então blogueiro da "Veja". Ela queixava-se de texto da revista sobre o irmão. Azevedo chamava a reportagem de "nojenta" e repetia críticas, que costuma fazer em seus escritos, ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot.

A conversa veio à tona em 23 de maio por meio do site BuzzFeed. O grampo foi retirado de lote de mais de 2.000 áudios anexados ao inquérito originado nas delações da cúpula do grupo JBS, tornados públicos pelo Supremo Tribunal Federal.

Ao ser informado da gravação, o jornalista pediu demissão da revista e afirmou que o foco da divulgação da conversa era ele, não Andrea. A PF disse que não incluiu o áudio; a PGR disse o mesmo. O STF repôs o sigilo em parte dos áudios e determinou uma investigação sobre as responsabilidades no episódio.

O editor de notícias do BuzzFeed Brasil, Graciliano Rocha, diz que os repórteres, ao tomarem conhecimento da gravação, identificaram ali indevida quebra do sigilo da fonte. Rocha afirmou que, a partir desse momento, havia interesse jornalístico em revelar a existência do grampo e de seu conteúdo.

Não parece decisão fácil. Não havia na conversa entre Andrea e Reinaldo nada relacionado à investigação em curso. Era a típica conversa de jornalista com fonte conhecida. Ao divulgá-la amplificou informação que não deveria ser conhecida. Por outro lado chamou a atenção para divulgação absurda.

O que mais haverá nos milhares de gravações, muitas das quais consideradas sem relevância pela PF? Pessoas comuns tiveram a vida devassada? Outros jornalistas tiveram conversas interceptadas? São perguntas que rondam as Redações, que têm a responsabilidade de publicar ou não.

GLOBO VERSUS FOLHA

Se a unanimidade esteve presente no caso do grampo, a divergência entre dois dos maiores órgãos de comunicação ocupou páginas da Folha. Na quarta (25), o colunista Marcelo Coelho, no artigo "Vamos falar da Globo?", fez rara tentativa de analisar o comportamento da mídia na cobertura do vasto noticiário de corrupção. Apontou a dependência exagerada de informações do Ministério Público e da Polícia Federal. Chamou de "irresponsabilidade" a Globo ter passado 24 horas afirmando que o presidente Michel Temer chancelou pagamentos pelo silêncio de Eduardo Cunha.

A polêmica estava na frase "tem que continuar" dita por Temer em encontro com o empresário Joesley Batista. As primeiras informações, de "O Globo", eram de que o presidente fizera o comentário ao ouvir que o empresário comprara o silêncio de Cunha. O áudio do diálogo -comprometedor para o presidente- mostrou que a declaração seguiu-se à afirmação de Batista de que estava "de bem" com Cunha.

A crítica de Coelho relevava o fato de que, assim como a Globo, a própria Folha dissera ter confirmado a informação. Coelho também criticou a falta de visão divergente no noticiário da GloboNews.

O diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, considerou o texto de Coelho ofensivo à Globo e a seus jornalistas. Em artigo publicado na Folha, na quinta (26), acusou o colunista de mentir, de não ser ético ao apontar feridas alheias sem mencionar as da própria Folha e reafirmou o compromisso da Globo em abrir espaço para o contraditório.

O tom da cobertura dos veículos do grupo Globo após o furo sobre a conversa gravada de Temer e Joesley -mais crítico do que o habitual, a ponto de o jornal "O Globo" pedir a renúncia do presidente em editorial de capa- levou ao surgimento de variadas teorias conspiratórias.

O texto do colunista da Folha tinha razão de ser. Coelho tem direito de avaliar o jornalismo praticado pela Globo, assim como Kamel deve defender o trabalho da equipe que dirige. É o tipo de discussão que enriquece o leitor, a partir do conhecimento de posições antagônicas sobre tema em destaque. É bom para o jornalismo e para a sociedade.

A Folha é o único jornal brasileiro, de circulação nacional, a manter instrumentos de crítica ao jornalismo que pratica, como o ombudsman, a publicação diária de Erramos e a política de abrir espaço para críticas ao próprio jornal.

A semana mostrou que a crítica de mídia, tratada com precisão, distanciamento e sem maniqueísmos é tema relevante, necessário e de interesse do leitor.


Endereço da página:

Links no texto: