Folha de S. Paulo


A sempre saudável desconfiança

Ueslei Marcelino/Reuters
O presidente Michel Temer deixa o Palácio Jaburu, em Brasília
O presidente Michel Temer deixa o Palácio Jaburu, em Brasília

"Tá difícil de competir", caçoou em rede social a equipe da série "House of Cards", produção americana com bastidores ficcionais da política, comentando os acontecimentos brasileiros da semana.

A delação dos irmãos Wesley e Joesley Batista -comandantes das empresas do grupo J&F, dono da JBS e da marca Friboi- devastou a política brasileira. Tinha elementos de cinema para torná-la espetacular.

Os delatores do grupo J&F detalharam o mundo encantado das doações ilícitas a 1.829 candidatos (deputados, senadores, governadores), de 28 partidos, totalizando R$ 600 milhões, em troca de contrapartidas diversas. Colocaram o presidente da República no subsolo de um palácio em reuniões secretas, nas brumas da noite.

O acordo judicial eram favas contadas. A coluna Painel, da Folha, publicou, na terça (16), que Joesley decidira avançar nas negociações para um acordo de colaboração premiada após se sentir ameaçado de prisão pela Polícia Federal.

No dia seguinte, "O Globo" deu o furo: noticiou que Joesley havia gravado conversas com o presidente Michel Temer (PMDB-SP) e o senador Aécio Neves (PSDB-MG). Segundo o colunista Lauro Jardim, Temer teria dado aval para o empresário seguir com mesada que patrocinava o silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e do doleiro Lucio Bolonha Funaro

Jardim disse ter sido informado que a delação envolveria Temer, Aécio e que haveria operações controladas –como é chamada a forma de investigação em que o suspeito aceita coletar provas, com a supervisão direta e o apoio da polícia, em troca de benefícios, como tempo menor de prisão ou extinção da pena.

A notícia, publicada pelo jornal carioca às 19h30 da quarta (17), incendiou as Redações. A Folha levou 33 minutos para colocá-la no ar, atribuindo a informação original a "O Globo", mas ressaltando que havia conseguido confirmá-la.

O STF autorizou prisões, apreensões, afastou dois parlamentares de suas funções e abriu inquérito contra o presidente da República. A operação parecia ser a mais técnica até então. Com a colaboração de delatores, a polícia filmou o recebimento do dinheiro, com cédulas marcadas, em malas que tinham localizadores eletrônicos.

A partir da informação do colunista de "O Globo", jornalistas, comentaristas políticos e redes sociais passaram a condenar Temer e pedir sua renúncia. Isolado, o presidente reclamou de ter que se defender sem ter ouvido a gravação.

Nenhum dos jornais explicitou que, num primeiro momento, não houve acesso aos áudios ou às suas transcrições. Todos se basearam em informações com origem nos delatores ou nos procuradores, partes interessadas no processo. Faltou transparência nesse ponto.

Quando o STF liberou o conteúdo das delações e do material que a amparava, instalou-se discreta polêmica. A Folha foi a que mais radicalmente mudou de tom. Na tarde da quinta, afirmou em manchete no site que a transcrição do áudio da conversa entre Temer e Joesley era "inconclusiva" no que dizia respeito ao suposto aval do presidente à compra do silêncio de Eduardo Cunha. A gravação possuía diversos trechos inaudíveis.

Com a divulgação do áudio, pode-se entender que a frase "Tem que manter isso, viu?", dita por Temer, parece referir-se ao "Estou de bem com o Eduardo", e não diretamente ao pagamento de propinas para evitar que o ex-deputado delatasse.

Só na sexta o jornal obteve resultado de análise, encomendada a perito, que apontou "indícios claros de manipulação e cortes" no áudio. A PGR já reconhecia, em documento oficial, que o áudio fora analisado "de forma preliminar".

Se no primeiro momento o jornal abraçou apressadamente a versão do furo que tomara, talvez tenha sido enfático por demais ao decretar a inconclusividade da gravação. Mesmo com a dúvida sobre esse trecho, o conteúdo do áudio representava uma conversa grave e comprometedora do chefe do Executivo.

Vários leitores reagiram com indignação à mudança de posição da Folha. O secretário de Redação, Vinicius Mota, considera que houve evolução na avaliação jornalística.

"Na quarta, o público não havia tido acesso aos áudios completos, embora a Folha tenha confirmado a existência da delação. Na quinta, após avaliar o material completo, o jornal entendeu não haver prova inconteste, na gravação, de que o presidente Michel Temer dera aval à compra do silêncio de Eduardo Cunha. Essa é a interpretação da Procuradoria, negada pela defesa do presidente", afirmou.

A avassaladora quantidade de documentos –em forma de áudios, vídeos e relatórios– torna a vida da imprensa arriscada e perigosa. Há muito a ser esclarecido. O caso exige técnica e discernimento.

O saudável exercício de dúvida da Folha abriu flanco novo na investigação. A lição a tirar do episódio é a necessidade de o jornal manter-se independente, cético e questionador dos fatos e de suas fontes. Poderá até desagradar a parte dos leitores num primeiro momento, mas reafirmará seu compromisso fundamental com a credibilidade.


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