Folha de S. Paulo


Vida de repórter: o tempo do glamour passou

O jornalismo e os jornalistas costumam aparecer glamorizados nas artes em geral. Com alguma dose de cinismo e ironia, pode-se tomar como exemplo uma passagem do escritor inglês Evelyn Waugh (1903-1966), em "Furo! "" Uma história de jornalistas": "Como regra, há uma coisa com que você pode sempre contar em nosso trabalho: popularidade. Há muitas desvantagens, eu admito, mas você é apreciado e respeitado. Ligar para pessoas a qualquer hora do dia ou da noite, bater em suas casas sem ser convidado, para fazê-los responder a uma série de perguntas tolas quando eles querem fazer outra coisa ""e ainda assim eles gostam. Sempre um sorriso e o melhor de tudo para os senhores da imprensa".

O imaginário da profissão, porém, tem se alterado. O tempo do glamour não só passou, como parece ter sido substituído pela era das trevas na construção social da função.

Site americano especializado em emprego, o CareerCast colocou, pelo terceiro ano consecutivo, a profissão de repórter como a pior dos EUA. O levantamento leva em consideração perspectivas de crescimento na carreira, renda, condições ambientais e estresse.

Em particular, os jornalistas que cobrem a área política estão sob tensão especial tanto nos EUA quanto no Brasil. O declínio da receita publicitária que afeta jornais, rádios, emissoras de televisão e portais da internet colocou a profissão de repórter entre as 13 piores perspectivas de emprego, com previsão de crescimento negativo até 2024.

Em fase de transição de modelo e de características, o jornalismo não é o melhor lugar para quem tem como preocupação imediata perspectivas de crescimento profissional, dinheiro e qualidade de vida.

Na busca de compreensão do fenômeno no Brasil, abordei competentes profissionais da Folha, de diferentes gerações, trajetórias e atuações, e pedi-lhes que comentassem do relatório. Na versão digital do jornal o leitor poderá conhecer suas opiniões mais detalhadamente.

Trabalhar extensivamente sob cobrança do público e com prazos apertados contribui para as classificações de alto estresse para repórteres dos vários tipos de mídia.

Apesar de sentirem na pele o peso das críticas, a pressão e a tensão provocada pela polarização, mais de um repórter comentou que esse ambiente tem o efeito de levá-lo a considerar diferentes pontos de vista, mesmo que discorde frontalmente de alguns deles, e a examinar mais atentamente os próprios preconceitos e ideias consagradas.

A repórter Patrícia Campos Mello lembrou frase atribuída ao senador americano Daniel Patrick Moynihan, perfeita para os tempos atuais: "As pessoas têm direito a suas próprias opiniões, mas não têm direito a seus próprios fatos".

Um toque de equilíbrio e esperança foi o anúncio feito pela presidente do STF, Carmem Lúcia, da instauração de comissão que investigará possíveis obstáculos ao exercício livre do jornalismo no âmbito do Conselho Nacional de Justiça.

Como afirmou, apesar de ser proibida a censura, continua a haver vetos e constrangimentos a jornalistas no exercício profissional.

Decidi dedicar este espaço à vida de repórter na esperança de alertar o leitor para os desafios à volta, como aponta Mario Cesar Carvalho. "O que causa estresse é saber que a profissão corre o risco de extinção, ao menos do modo como existiu no século 20. O que estressa é não ver perspectiva de futuro. 'No future' deixou de ser um slogan punk; virou um mote real."

A superação da crise atual do jornalismo reserva papel de destaque ao repórter. Tudo mudou, menos a certeza de que o jornalismo vive de notícia relevante, inédita bem apurada e bem escrita.


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