Folha de S. Paulo


Pagando para ver

A Folha lançou seu novo projeto editorial na última quinta-feira, 30 de março. É uma carta de intenções destinada à Sua Excelência, o leitor. É também uma espécie de mapa de navegação, à qual a estrutura jornalística que produz a Folha deve recorrer para balizar seus caminhos nas vias da informação.

O esforço do jornal em refletir sobre sua rotina e em estabelecer parâmetros é louvável exercício de autocrítica e transparência.

O primeiro projeto editorial da Folha, assim formalizado, data de 1981. O país estava sob uma ditadura, vivia grave crise econômica e social e titubeava na transição política em direção à democracia.

O texto, divulgado internamente, fixava três metas: "Informação correta, interpretações competentes sobre essa informação e pluralidade de opiniões sobre os fatos".

O projeto pioneiro na imprensa brasileira dialogava com as gerações futuras, para que pudessem dizer da Folha: "Eis aí algo de útil e bom, algo que deve ser preservado". Quase quatro décadas depois, é possível dizer que essa impressão está arraigada entre os leitores.

Foi com as bandeiras sistematizadas no texto de 1984 —um jornalismo crítico, pluralista, apartidário e moderno— que a Folha se tornou o maior jornal do país.

No entanto, o desenvolvimento tecnológico, em velocidade nunca vista, começou a abalar estruturas que pareciam sólidas. As transformações da era digital ganharam força nos anos 1990.

Em meio ao que se chamou de caos informativo, a Folha produziu em 1997 o projeto editorial que vigorava até agora. Receitava um jornalismo mais seletivo, qualificado e didático para sobreviver a uma sociedade em mutação. Questionava seus próprios pressupostos: o que informar, para quem e para quê?

São essas as respostas que o novo projeto editorial busca renovar. Em sintonia com a atual mania de listas, o projeto foi sintetizado em 12 princípios editoriais, encabeçados por questão básica, porém premente na era da pós-verdade: "Confirmar a veracidade de toda notícia antes de publicá-la".

Para diferenciar-se na cacofonia digital, o projeto define como jornalismo profissional aquele que "segue regras técnicas e padrões de conduta que garantem relatos fidedignos de fatos relevantes".

Assume que a definição de jornal não está no suporte impresso nem na periodicidade diária, mas no propósito de "condensar o que ocorre de relevante para um público interessado em informação, opinião e análise".

Pretende oferecer ao leitor um leque menos extensivo de assuntos, mas com abordagens mais inteiriças e interpretativas. Enfatiza que a prioridade do trabalho jornalístico continua sendo divulgar a informação exclusiva: fato relevante, inédito e bem apurado.

Detecta um ambiente "saturado de um maniqueísmo tosco". Propõe que a exposição do contraditório ao público leitor seja um "antídoto ao irracionalismo que se mostra refratário não apenas às formas tradicionais de intermediação política, mas também a todo tipo de ponderação, equilíbrio e nuança".

Prega que é preciso "reforçar o sistema interno de freios e contrapesos —a obrigação de publicar contestações fundamentadas, a atividade do ombudsman (profissional dedicado a representar direitos do leitor, das fontes e dos personagens do noticiário) e a veiculação metódica de retificações de equívocos constatados".

É difícil discordar dos princípios defendidos. É muito difícil mensurar sua aplicação. Muitos deles são óbvias reafirmações de cláusulas pétreas do jornalismo. Há detalhes que se podem transformar em armadilhas, quando o jornal defende, por exemplo, que deve buscar notícias que despertem curiosidade legítima. O que exatamente isso quer dizer? Que tipo de informação pode vir sob essa justificativa?

A meu ver, o ponto mais sensível do novo projeto editorial está no trecho em que chancela a "comercialização de conteúdos patrocinados, financiados por anunciantes ou parceiros, desde que a natureza publicitária do produto seja transparente para o leitor e não haja envolvimento da Redação na confecção".

Entendo que, em meio à crise do modelo de financiamento do jornalismo de qualidade, a Folha abrace com transparência tal fonte de receitas. Jornais do mundo todo seguem a mesma linha, com tropeços semelhantes.

A atenção para que limites sejam respeitados precisa ser redobrada. A experiência cotidiana demonstra quão difícil é a sintonia fina para tal transparência. A primeira página publicitária da quarta-feira, 29, paga por entidades contrárias à pirataria, é exemplo de permissividade que deve ser evitado. Confunde o leitor ao colocar o projeto gráfico do jornal a serviço do comercial.

O leitorado recebeu o novo projeto editorial com elogios, ceticismo e críticas: o elogio dos princípios, a dúvida sobre a real possibilidade de serem plenamente atingidos e a crítica de que muitos dos pressupostos ali expressos são hoje desrespeitados pelo jornal.

O leitor —consumidor de notícias e a razão de ser do jornal—, está pagando para ver expressos nas edições impressas e digitais da Folha os princípios alinhavados na carta de intenções a ele dirigida. A ombudsman estará ao seu lado com o projeto na mão.


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