Folha de S. Paulo


A imprensa e as fábricas de salsicha

Eraldo Peres - 21.mar.2017/Associated Press
Workers prep poultry at the meatpacking company JBS, in Lapa, in the Brazilian state of Parana, Tuesday, March 21, 2017. Brazil's president said Tuesday that a scandal over sale of expired meat is an
Funcionários na linha de produção da JBS, no Paraná; crise nos frigoríficos dominou o noticiário

O espetáculo de realismo mágico -nas palavras de um juiz- começou na sexta-feira (17), com a maior operação da história da Polícia Federal.

A PF investigou durante dois anos esquema de propinas envolvendo 32 empresas que pagavam fiscais do governo federal para liberar carnes adulteradas ou estragadas.

Os principais frigoríficos do país estavam entre os investigados. A carne adulterada chegara na merenda escolar. Haveria produtos com substâncias potencialmente cancerígenas. Não era bem assim.

Esse foi o tema mais comentado pelos leitores, que criticaram o trabalho da imprensa e da polícia.

Dizia o texto da edição de sábado: "Ao longo de dois anos de apuração, a PF afirma ter encontrado em gôndolas de supermercados carnes adulteradas, com prazo de validade vencido e maquiadas com produtos proibidos por lei".

Um leitor cobrou: "Por que os jornais não questionaram essa demora da polícia em divulgar assunto de extrema importância, em vez de punir e evitar que população consumisse carne com problemas?"

A Folha publicou o que a polícia divulgou, sem questionar, sem duvidar, sem consultar especialistas que pudessem ajudar na avaliação dos fatos. Não investiu em linha própria de investigação nem saiu a campo atrás de evidências.

Na segunda (20), o jornal embarcou também acriticamente nas vozes das empresas e do governo. Passou a ser crítico à operação policial, com a demonstração de relatos inapropriados, generalizações descabidas e provas técnicas parciais ou incompletas. O estrago para o setor já estava feito. O leitor, perdido, ficou sem saber em quem acreditar.

O editor de "Mercado", Ricardo Balthazar, admitiu que "o tom da cobertura foi ajustado durante o fim de semana, à medida que a avalanche de informações da polícia pôde ser avaliada com mais cuidado".

Lembrou que, na segunda-feira, primeira reportagem mais crítica da Folha informou que nos dois anos de investigação somente um dos frigoríficos teve seus produtos submetidos a análise técnica pela polícia, demonstrando de forma objetiva as fragilidades do trabalho policial.

De modo geral, tanto quanto a investigação sobre a carne, fraca acabou sendo a cobertura da Folha.

Veio à tona antiga associação: assim como a salsicha, se o leitor soubesse como os jornais são feitos, também não os consumiria?

Pela transparência e a boa prática jornalística

A coluna publicada em 19 de março esteve no centro de polêmica entre atores do jogo político brasileiro.

Escrevi que a cobertura dos principais órgãos de comunicação sobre os pedidos de abertura de inquérito baseados nas delações premiadas de executivos e ex-executivos da construtora Odebrecht trazia versões inacreditavelmente harmoniosas umas com as outras.

Das dezenas de envolvidos na investigação, vazaram para os jornalistas nesse primeiro momento os mesmos 16 nomes de políticos, sem que se saiba o critério utilizado.

Apurei que as informações foram obtidas em encontro de jornalistas e representantes da Procuradoria-Geral da República, sob condição de off, quando a fonte da reportagem não é identificada no texto.

O procurador-geral, Rodrigo Janot,disse que a afirmação é uma "mentira". O ministro do STF Gilmar Mendes aproveitou para acusar a PGR de "chantagem" ao vazar informações sob sigilo. Janot reagiu falando em "disenteria verbal".

Reafirmo, como já fiz durante a semana, as informações aqui publicadas, confirmadas por mais de três fontes independentes, como requer a boa prática jornalística.

A ombudsman é profissional com atuação independente e isolada da Redação da Folha. Se a informação chegou até mim, cabia apurar, verificar e publicar. Foi o que fiz, em nome da transparência e da defesa do bom jornalismo que o leitor merece.

Há crises que são saudáveis por gerar a necessidade de revisão de procedimentos e comportamentos. A operação Lava Jato se coaduna com esse espírito em muitos dos seus principais movimentos. O turbilhão que involuntariamente provoquei também tem esse potencial.

Os defensores da independência, da transparência e da acuidade da informação têm aqui uma aliada, onde os obscurantistas por certo verão uma adversária.

*

O editor de "Mercado" da Folha, Ricardo Balthazar, contestou o resumo que fiz de sua posição a respeito das críticas à cobertura do jornal sobre a crise da carne, desencadeada pela operação Carne Fraca, publicadas nesta coluna.

Sua resposta teve de ser cortada devido à restrição de espaço na edição impressa. Reproduzo aqui a íntegra da mensagem que me enviou:

"O tom da cobertura foi ajustado durante o fim de semana, à medida que a avalanche de informações produzida pela Polícia Federal pôde ser avaliada com mais cuidado.

Os textos da edição impressa de sábado são mais sóbrios do que os publicados no calor da hora na sexta-feira e levantam dúvidas sobre afirmações feitas pela polícia durante o início da operação.

Já na segunda-feira, a Folha informou que em dois anos de investigação somente um dos frigoríficos sob investigação teve seus produtos submetidos a uma análise técnica pela polícia, demonstrando de forma objetiva as fragilidades do trabalho policial.

No mesmo dia, o jornal publicou um quadro discriminando as alegações feitas pela polícia em relação às duas maiores empresas atingidas pela investigação, a BRF e a JBS, e aos frigoríficos menores.

A cobertura foi crítica em relação ao trabalho policial sem ignorar as evidências de promiscuidade apontadas na relação entre frigoríficos e fiscais do Ministério da Agricultura, assunto que pretendemos continuar explorando nas próximas semanas."

Ricardo Balthazar, editor de "Mercado", sobre a cobertura da operação Carne Fraca


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