Folha de S. Paulo


Fatos são fatos

Donald Trump tornou-se presidente dos Estados Unidos em 20 de janeiro. No dia seguinte, afirmou: "Eu tenho uma guerra em curso com a mídia. Os jornalistas estão entre as pessoas mais desonestas da Terra".

Reagiu assim à informação de que sua posse reuniu menos gente do que a de Barack Obama: "Esta foi a maior audiência na história a testemunhar uma posse. Ponto final", afirmou o secretário de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer.

A assessora presidencial Kellyanne Conway chamou de "fatos alternativos" dados distorcidos divulgados por Spicer para tentar defender sua versão. Fatos são, simplesmente, fatos. Não aceitam adjetivação.

Na quarta-feira, 25, Stephen Bannon, estrategista-chefe de Trump, elevou os ataques: "A mídia deveria estar envergonhada e humilhada. Deveria ficar de boca fechada e só ouvir por um tempo. A mídia tem integridade zero, inteligência zero e nenhum trabalho duro".

Como a imprensa deve se comportar diante de um governo que se inicia com carga elevada de beligerância? Como reagir a provocações e mentiras? Que ameaças enfrenta uma sociedade que elegeu um governante temperamental e sem nenhum apego à verdade factual?

Colunista do jornal "The New York Times", Ross Douthat resumiu o quadro que desponta com a nova administração:

1) por um lado, será tempo de risco máximo à liberdade de expressão, com manipulações diversas como marginalizar a imprensa independente nas entrevistas presidenciais (na primeira entrevista coletiva, só um jornalista de blog conservador pôde fazer perguntas); usar processos judiciais para inibir jornalistas (pelo menos seis jornalistas foram presos durante a cobertura das manifestações contra o presidente no dia da posse); prejudicar economicamente as empresas de comunicação. Trump não estará sozinho ao insistir em tentar punir vazamentos de informações sigilosas, mesmo que de interesse público (enaltecido ao final, Barack Obama processou nove jornalistas com base em lei de espionagem linha-dura);

2) de outro lado, será um desafio depurador para a mídia, com os jornalistas tendo a chance de se livrar da dependência de fontes oficiais e mergulhar no jornalismo investigativo sério e independente que muitos acreditavam ter desaparecido com a internet. As informações relevantes estarão longe das confortáveis salas de imprensa. Os repórteres terão de gastar sola de sapato para contar histórias atraentes, equilibradas e reveladoras.

Expostos os perigos e oportunidades do novo tempo, jornais e jornalistas devem estar alertas para não tropeçar em tentações e armadilhas que aparecerão no caminho.

A primeira já foi lançada pelo estrategista-chefe de Trump: "A mídia é o partido de oposição. Eles não entendem este país. Eles ainda não entendem que Donald Trump é o presidente dos Estados Unidos".

A segunda parte da frase é precisa; a primeira é uma imprecação raivosa. Os jornais não podem confundir posição crítica com oposição política. A desconfiança é valor técnico do jornalismo, não ideológico.

Beira a infantilidade a reação de jornalistas que ameaçam deixar de comparecer a entrevistas oficiais e de noticiar ações de governo. É direito do leitor ser informado. É obrigação da imprensa informar. Adotar o trumpismo para si –mesmo que com o sinal inverso– é tão estúpido quanto o modelo original.

O crítico de mídia Ryan Chittum ousou fazer um mea culpa: "Trump é vingativo e pode parecer alérgico a fatos. Mas é difícil negar a suspeita de que parte da reação é porque nós jornalistas, como categoria, somos alienados de metade do país. Muitos de nós não entendemos os eleitores de Trump, muito menos nos identificamos ou concordamos com eles. Ainda não aceitamos o fato de que a eleição de Trump é uma rejeição a nós, tanto quanto às outras elites que ele criticou".

E o Brasil e a imprensa brasileira com isso? As ações de Trump interferem na economia brasileira, ameaçam milhares de brasileiros que emigraram e criam um ambiente de radicalismo político que viraliza mundialmente.

Leituras a partir da nossa realidade serão fundamentais na busca de uma cobertura relevante e com identidade própria.

O Brasil já vive o desafio de praticar um jornalismo mais técnico e equilibrado em condições anormais de pressão e provocação desde 2013, com as manifestações de junho e, depois, com o impeachment. O esgarçamento social e político brasileiro tende a se agravar até a eleição presidencial de 2018. Informar criticamente não é tomar partido.


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