Folha de S. Paulo


Contra os mexericos

As teorias conspiratórias se propagam onde há grande tensão –política, social ou emocional–e muita opacidade. Elas se alimentam do incompreendido, do inexplorado, do não revelado.

A morte do ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki é um daqueles casos que põem à prova a imprensa brasileira e sua capacidade de reagir a boatos com informações checadas e transparentes.

Uma figura proeminente que enfrenta grupos políticos e econômicos poderosos morre em acidente de avião que vitimou mais quatro em circunstâncias nebulosas. A tragédia ganha contornos obscuros porque entre as vítimas estão um empresário com fama de "bon vivant" e duas mulheres cuja identificação demorou muito para ser divulgada.

Os elementos aqui resumidamente expostos são mais que suficientes para movimentar a máquina de elaboração da teoria da conspiração.

Além da perplexidade geral, começaram a circular imediatamente as mais variadas versões –não embasadas em indícios concretos– sobre a queda da aeronave e supostos segredos íntimos das vítimas.

Figura-chave na maior investigação já feita sobre corrupção, o relator da Operação Lava Jato pretendia, em fevereiro, chancelar e tornar público o conteúdo das delações premiadas de 77 executivos da Odebrecht. São cerca de 800 depoimentos com indícios de prática de corrupção e desvio de dinheiro público por duas centenas de políticos.

A imprensa não pode descartar qualquer linha de investigação. Deve buscar informações técnicas precisas que expliquem o acidente.

A quase totalidade dos especialistas em aviação atribui ao mau tempo um papel preponderante. Não houve explosões e o combustível parecia ser suficiente. O piloto era experiente e conhecia a rota.

A possibilidade de sabotagem que provocasse a queda do avião uma hora depois da decolagem é minimizada por quem tem conhecimento técnico, mas não descartada. O filho do ministro reafirmou que a família recebia ameaças.

Um dos valores mais nobres da ação de Teori Zavascki na Lava Jato foi a reiterada transparência de seus atos. Em sua memória, a imprensa e as instituições devem seguir esse preceito até o limite máximo. Só assim poderão evitar que se perpetuem as versões apimentadas das teorias conspiratórias.

Um lado mais sensível, seja do aspecto ético, seja do moral, é a relação entre as vítimas. Alguns questionaram o interesse de um empresário em oferecer voo e hospedagem a um ministro do STF.

Carlos Alberto Filgueiras, dono do hotel Emiliano, contestava no Supremo uma ação que o acusava de construir ilegalmente em área de proteção ambiental. Era também sócio do banqueiro André Esteves, que chegou a ser preso pela Lava Jato.

Tendo a ver como inadequado esse tipo de proximidade. Mas ninguém vive em uma bolha. Juízes mantêm laços de amizade. Aqui também é preciso ser transparente.

É legítimo relatar e investigar interesses de Filgueiras que tenham trâmite no STF. Se nenhuma decisão do ministro, entretanto, comprovadamente o favoreceu, não há por que condenar a relação dos dois. Daí ser imperioso investigar com cuidado.

As duas mulheres que os acompanhavam foram vítimas de comentários indelicados, muitas vezes cifrados. A Folha derrapou no tema.

O leitor Thiago Raposo reclamou de que, "no afã de dar um furo de reportagem", o jornal se prestou ao papel de divulgar conjecturas misóginas. Descreveu fotos postadas em rede social de uma das vítimas com olhar machista, que salientava os cabelos pintados de vermelho, tatuagens e a prática de dança do ventre.

Concordo com o leitor que a citação foi descontextualizada e alimentou percepções que podem ser injustas e equivocadas. É o tipo de escorregão que não cabe em um jornal de qualidade. A intimidade das vítimas deve ser preservada, a menos que haja razão de interesse público para que seja exposta.

A morte de Teori Zavascki deve pôr o jornalismo em alerta pelos riscos que representa. Não por mexericos. O STF terá que definir o novo relator e, com isso, o futuro da Lava Jato. Manter características de independência, transparência, respeito aos trâmites legais e direito ao contraditório será fundamental para que o país avance em meio à investigação turbulenta.

Zavascki pregava que fossem públicas todas as informações de processos judiciais que não pudessem comprometer investigações futuras.

Seguia diagnóstico centenário de Louis Brandeis (1856-1941), juiz da Suprema Corte dos EUA: "Transparência é adequadamente elogiada como o melhor remédio para doenças sociais e industriais. A luz do Sol é reconhecida como o melhor dos desinfetantes".

Caberá à imprensa cobrar que seu sucessor na Operação Lava Jato assim proceda.


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