Folha de S. Paulo


A tentação por trás dos dossiês

A semana foi marcada pelo acirramento dos conflitos entre o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, e órgãos de jornalismo. A rede de televisão CNN e o site BuzzFeed divulgaram a existência de um dossiê de 35 páginas com informações não comprovadas contra Trump. Em resposta, o republicano acusou a mídia de ser antiética e parcial. O caso é intrincado. Aqui está o busílis: como a mídia deve agir diante de informações não confirmadas?

No ano passado, uma empresa de pesquisa política contratada por adversários republicanos de Trump, ainda na disputa interna do partido, chamou um ex-espião britânico para investigar eventuais elos entre Trump e a Rússia. Os memorandos que o espião produziu narram que o Kremlin tentou obter influência sobre Trump, preparando-se para chantageá-lo com supostos vídeos de sexo e suborná-lo com ofertas vantajosas de negócios.

A notícia sobre o dossiê foi dada pela CNN na terça (10). Em seguida, o site BuzzFeed divulgou a íntegra do documento, avisando aos leitores que as informações não haviam sido verificadas.

A Folha tomou atitude sóbria e correta. Fez valer o serviço do "New York Times" a que tem direito. Em dois grandes textos, o jornal americano informou seus leitores, sem aderir a tons sensacionalistas.

Dossiês como armas de campanha não são novidades na política. O Brasil acumula exemplos. É possível citar o dossiê Cohen, de 1937, passar pelo dossiê Cayman, de 1998, e chegar ao dos aloprados, de 2006.

Em 1937, o general Olympio Mourão Filho foi o autor do Plano Cohen, dossiê atribuído aos comunistas sobre como se daria, hipoteticamente, a dominação comunista no país. Tratado como autêntico pelo governo, o documento, que não passava de uma falcatrua, serviu de justificativa para um golpe de Estado, por meio do qual Getúlio Vargas implantou o Estado Novo.

Em 1998, apareceu o chamado dossiê Cayman, como definiu a Folha na época, "um conjunto de fotocópias sem veracidade comprovada" que indicava uma associação em uma empresa das Bahamas e em contas em dois paraísos fiscais do então presidente Fernando Henrique Cardoso com os ministros José Serra e Sérgio Motta e o governador Mário Covas.

Foi noticiado fartamente pela imprensa brasileira. Somente três anos depois comprovou-se que era falsa a principal peça do dossiê, o extrato bancário de US$ 352,971 milhões do banco Schroders, na Suíça, em nome de uma empresa chamada CH, J & T. A empresa, que existia de fato, não pertencia aos tucanos e o extrato a ela atribuído fora forjado.

Em 15 de setembro de 2006, a duas semanas do primeiro turno das eleições, integrantes do PT foram presos pela Polícia Federal em um hotel de São Paulo ao tentar comprar um dossiê contra o candidato do PSDB ao governo de São Paulo, José Serra. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tentando diminuir a importância do episódio, afirmou que aquilo era obra de "um bando de aloprados".

Não cabe analisar aqui o papel da imprensa brasileira em cada um dos episódios. A questão é outra.

Não há dossiê, relatório ou inquérito que seja portador da verdade absoluta. O relato de fatos comprovados é a razão de ser dos jornais, que não podem abrir mão do papel de investigadores independentes, verificadores das informações, técnicos em formatar a narrativa, com contextualização e análise.

Dossiês de origem subterrânea, investigações policiais e do Ministério Público ou informações recolhidas nas sombras do poder são notícia em estado bruto e devem ser submetidas a crivo técnico.

Não se pode ignorar, entretanto, que vivemos tempos diferentes, em que notícias –falsas e verdadeiras– circulam sem controle. Não há solução fácil, obviamente. Tendo a achar que fortalece a credibilidade do jornal noticiar a existência do dossiê, mas sem entrar nos detalhes do conteúdo até conseguir comprovar sua autenticidade.

De que serve publicar, num dia, informações –que podem ter consequências danosas– e mais adiante reconhecer que eram falsas? Isso as redes sociais já fazem.

No episódio de Trump, coube ao novato BuzzFeed a divulgação do tal relatório na íntegra. Alegou que caberia aos leitores formar juízo próprio. Mas os leitores não têm as ferramentas e a expertise necessárias para tal investigação e verificação. Por isso decidem pagar por informações apuradas, editadas e redigidas por órgãos especializados.

É a essência do jornalismo, a qual o BuzzFeed ignorou.


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