Folha de S. Paulo


Cada cabeça, uma sentença

Para quem havia acabado de saudar 2017 com a esperança de que fosse um ano melhor do que o que passou, foi uma paulada de pessimismo. Os massacres em presídios de Manaus e Boa Vista, com dezenas de presos decapitados em imagens tenebrosas, estarreceram o país logo após o período de festas.

Apesar da distância geográfica dos fatos, a cobertura da Folha foi ágil, com bom material investigativo, além de eficiente no acompanhamento factual.

O ponto negativo foi o jornal publicar declarações de autoridades -que variavam do absurdo ao constrangedor- sem que elas fossem questionadas e problematizadas.

Uma declaração simboliza o que pretendo dizer: "Eu quero me solidarizar com as famílias que tiveram seus presos vitimados naquele acidente pavoroso que ocorreu no presídio de Manaus", afirmou o presidente Michel Temer (PMDB).

Na edição de sexta-feira, 6, que trazia editorial crítico ao governo, o jornal noticiou a infeliz declaração do presidente em meio à reportagem sobre pacote de segurança requentado. Ao não destacar a frase de Temer sobre o "acidente", o jornal deixou de iluminar faces do presidente: lento nas reações e infeliz na comunicação de governo.

Uma ação escabrosa amplificou a falha de abordagem da imprensa em geral e da Folha em particular: as decapitações.

O jornal demorou a dedicar um título à informação de que metade dos presos havia sido decapitada. Quando o fez, limitou-se a informar que o decepamento dificultava a identificação dos mortos. As decapitações foram normalizadas pela mídia e pelos governos.

Segundo reportagem do jornal "O Globo", decapitações têm sido registradas em pelo menos 11 Estados brasileiros desde a rebelião no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, em 2013.

Uma hipótese para tal letargia seria um reflexo da visão majoritária na sociedade brasileira de que presos devem sofrer, mais do que ser punidos. Outra embute preconceitos de classe e de cor.

O Estado Islâmico mata jornalistas ou soldados, brancos e ocidentais. As facções criminosas que mandam nos presídios do país decapitam homens, na maior parte das vezes, pobres e negros.

A voz solitária de Janio de Freitas resumiu o ponto em questão: "O país deveria horrorizar-se antes, em qualquer das dezenas de anos do seu conhecimento e da sua indiferença pelas condições -criminosas tanto nas leis brasileiras como nos acordos internacionais- a que os encarcerados são aqui submetidos. Não o fez jamais."

Outro aspecto é a divulgação ou não de vídeos e fotos chocantes distribuídos pelas redes sociais. O leitor Carlos Eduardo Freitas considerou que, ao publicar essas imagens, a Folha desrespeitou "a ética jornalística, a responsabilidade social da profissão e os direitos humanos".

O jornal estampou o aviso: "Atenção: as imagens a seguir são agressivas". Poderia ter dado destaque ainda maior e sido mais explícito.

É uma decisão complexa, que deve ser feita caso a caso. Em geral, a divulgação de imagens fortes contribui para dar a dimensão correta do acontecimento.

Em 2018 a Declaração Universal dos Direitos Humanos completará 70 anos. Há 20 anos a Folha publicou caderno especial com o título "E agora?". A pergunta referia-se à situação mundial 50 anos depois da assinatura daquele documento.

De lá para cá, as crises humanitárias, as guerras e os fechamentos de fronteiras -para citar alguns casos- demonstraram haver deterioração do quadro.

A defesa dos direitos civis e o olhar severo para suas violações foram marcas da Folha nos anos 1980, período crucial do processo de consolidação democrática.

O jornal não pode aceitar barbaridades como decapitações de presos sob a guarda do Estado nem colaborar para sua vulgarização. É preciso indignação. É preciso cobrar que, para cada cabeça decepada, haja uma sentença judicial.

A defesa dos direitos civis não pode estar associada a correntes ideológicas. É uma cláusula pétrea do contrato social de um país. São direitos inegáveis, irredutíveis, acima de governos e governantes. Não podem ser violados impunemente, seja por incompetência ou omissão.

Por vezes, aceita-se a ideia de que a defesa dos direitos civis é bandeira de esquerda ou de certos movimentos políticos. É um erro custoso para aqueles que defendem uma sociedade mais justa e igualitária. A Folha não pode abrir mão de valores que marcaram sua história.


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