O primeiro furo, a notícia exclusiva de um jornal, estava na manchete da Folha do sábado, 19 de novembro: "Ministro acusa homem forte de Temer ao deixar Cultura". O desfecho da crise daí ocasionada foi publicado na manchete deste sábado (26): "Geddel cai, e Temer perde 6º ministro em 6 meses".
O ministro Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo) pressionou Marcelo Calero, então colega da Cultura, em favor da liberação da construção de um edifício, no qual ele e parentes possuem apartamentos.
O edifício está situado em região histórica e protegida de Salvador. O Iphan, órgão do Ministério da Cultura responsável pelo patrimônio histórico e cultural, não licenciou a construção.
Do início ao fim, o caso Geddel é um exemplo comum de abuso de autoridade. Mas é exemplo raro, nos dias de hoje, de apuração jornalística de qualidade, feita no calor dos acontecimentos. Investigação própria, didatismo, equilíbrio e persistência. O conjunto da obra da Folha mostrou-se louvável.
À revelação do pedido de demissão do ministro da Cultura, feita pela Folha em seu site no início da noite do dia 18, seguiu-se entrevista a Natuza Nery e Paulo Gama, em que Marcelo Calero resumiu as acusações contra Geddel, publicada como manchete de sábado, 19.
No mesmo dia, "O Estado de S. Paulo" dizia haver apurado que o motivo da queda de Calero havia sido projeto que transformava a vaquejada em patrimônio imaterial. Era a malfadada versão oficial. O Planalto fez de tudo para tentar minimizar e até ridicularizar o caso.
No dia 20, Matheus Magenta e Paulo Gama revelaram que sócios do ministro tinham relações com a construtora que seria beneficiada com a liberação da obra. O escritório de um primo de Geddel representava a empresa em ação judicial.
Reportagem do dia 21 mostrava que a articulação ultrapassava os limites da Bahia. João Pedro Pitombo e Fábio Zanini lembraram que uma das medidas iniciais cogitadas pelo governo Temer -a criação da Secretaria Nacional do Patrimônio Histórico- esvaziaria o Iphan.
Pior: a Folha apurou que Geddel planejava emplacar como secretário o ex-presidente do órgão na Bahia, que havia autorizado em 2014 a construção do tal edifício La Vue. Decisão desfeita pelo Iphan nacional.
Ueslei Marcelino/Reuters | ||
Geddel sorri ao lado de Jovair Arantes (dir.), Genecias Noronha (esq.) e Pedro Chaves (ao fundo) |
O interesse escuso de Geddel ficaria mais claro na edição de quarta, 23. Manchete baseada em nova reportagem de Magenta e Pitombo revelou que parentes de Geddel (um deles seu sócio) eram representantes legais do edifício junto ao Iphan.
No mesmo dia, "O Globo" publicava que "o Planalto e aliados no Congresso resolveram dar o assunto por encerrado e montaram uma frente de defesa do ministro".
A gota d'água viria com mais uma revelação do Painel, da Folha. O ex-ministro da Cultura havia dado um depoimento à Policia Federal em que acusava o presidente Michel Temer e o ministro Eliseu Padilha de tentar enquadrá-lo para buscar uma solução para o caso.
O governo reagiu, montou uma operação para desqualificar Calero. Não deu certo. O ministro da Secretaria de Governo acabou por pedir demissão.
O jornal também mostrou equilíbrio. Não foi um linchamento. No dia seguinte ao da entrevista de Calero, a versão de Geddel ocupou a página de abertura do caderno "Poder" e foi manchete do jornal ("Geddel admite conversa com Calero, mas nega pressão").
O único porém foi a Folha ter deixado passar uma imagem simbólica da prepotência e da certeza de impunidade de Geddel e seus aliados: a foto publicada na capa de "O Globo" e de "O Estado de S. Paulo" e reproduzida acima.
A sequência de reportagens exclusivas envolveu pelo menos dez profissionais -de São Paulo, Brasília e Salvador-, num exemplo raro de coordenação e colaboração com resultados concretos. Fundamental para tempos de equipes reduzidas.
A Folha não tem -e não deve ter- como meta derrubar ministros ou presidentes, como muitos acreditam. Não considero que seja motivo de comemoração. Antes o país tivesse ministros inderrubáveis -pela lisura de sua atuação.
A função primordial do jornal é investigar o poder, cobrar e desnudar aqueles que ocupam cargos públicos. Este foi um saudável exemplo. O leitor quer mais. E merece ter.