Folha de S. Paulo


'Não é tão mau quanto Weinstein': sabotando a discussão sobre assédio?

Brendan McDermid - 9.dez.2017/Reuters
Manifestante carrega cartaz 'Nós não consentimos' em protesto em frente a hotel de Trump em NY
Manifestante carrega cartaz 'Nós não consentimos' em protesto em frente a hotel de Trump em NY

É um caso tipo Harvey Weinstein ou está mais para um Glenn Thrush? Dá para quantificar a gravidade de um ato de assédio sexual? Devemos estabelecer diferentes gradações para agressões sexuais? Ou isso é um erro, porque nos empurra para a tentação de supersimplificar, de restringir a oito ou oitenta, a piada inofensiva ou estupro —e dizer que, se não é um Harvey Weinstein, não é assim tão mau?

A decisão do "New York Times" de não demitir o repórter Glenn Thrush, acusado de assédio, e a publicação de um artigo de Bret Stephens no mesmo jornal, "normalizando" assédio, esquentaram a discussão.

Harvey Weinstein, o super poderoso produtor de cinema, perdeu o emprego e foi banido das organizações/empresas de que participava depois de vir à tona (através de reportagem do "The New York Times", a propósito) que ele havia estuprado três mulheres, tinha se masturbado na frente de algumas e bolinado outras.

Segundo a última contagem do jornal, 47 homens públicos foram forçados a renunciar a seus postos ou foram demitidos por acusações de assédio desde que emergiu o escândalo de Weinstein e o movimento #MeToo estimulou mulheres a contarem suas histórias.

Mas outros 26, entre eles Thrush, tiveram "penas" mais leves.

No dia 20 de novembro, Thrush, destacado repórter do "NYT" que cobria o presidente Donald Trump, foi suspenso após o site Vox publicar uma reportagem com acusações de quatro mulheres.

A reportagem descrevia como Thrush, um homem casado, de 50 anos, teria abordado de forma inapropriada jovens jornalistas na casa dos 20 anos.

Três das mulheres citadas na reportagem não eram identificadas e a quarta, a autora da reportagem, Laura McGann, escreveu em primeira pessoa.

McGann acusou Thrush de ter colocado a mão na coxa dela e começar a beijá-la em um bar perto do site Politico, cinco anos atrás. Ela era editora do site, ele era repórter.

No dia seguinte, McGann viu Thrush conversando com colegas homens. Ela relatou ter sentido que, posteriormente, alguns homens no escritório começaram a tratá-la de forma diferente. Segundo ela, Thrush teria dito aos colegas que ela havia dado em cima dele, e ele a havia repelido.

Thrush, em uma nota, disse que tinha outra lembrança do ocorrido. "Foi um encontro consensual, breve e terminado por mim. Ela era uma editora, acima de mim na hierarquia na época, e eu não falei mal dela para colegas, como ela alega."

Outra mulher entrevistada na matéria do Vox afirmou que, durante uma festa, Thrush sugeriu que eles fossem andar para tomar um ar. Aí ele a beijou e tentou segurar na mão dela. Ela ficou muito nervosa e contou a uma amiga, aos prantos.

"Foi algo que mudou minha vida. A mulher envolvida ficou chateada e peço desculpas", admitiu Thrush. "Nos últimos anos, eu reagi a uma sucessão de crises pessoais e problemas de saúde exagerando na bebida. Durante esse período, fiz coisas das quais me envergonho, que machucaram meus amigos e minha família. Eu não bebo desde 15 de junho de 2017, retomei a terapia e vou começar logo tratamento para alcoolismo. "

Uma terceira mulher entrevistada pelo Vox descreveu que ela e Thrush foram para o apartamento dela, e que o encontro acabou depois de ela ter lembrado ao jornalista que ele era casado. Ela disse que não foi pressionada por ele e não se sentia uma vítima.

A quarta mulher disse que ele deu um beijo de língua na orelha dela, de repente, num bar.

Na época, o editor-executivo do "New York Times", Dean Baquet, divulgou um comunicado: "Todas as acusações de assédio sexual serão levadas a sério e é crítico que mantenhamos os mais altos padrões de comportamento. A cultura de ambiente de trabalho que adotamos no NYTimes, como nossas reportagens, põem em primeiro lugar a justiça, a integridade e a verdade."

No dia 20, o Times anunciou que havia concluído a investigação e Thrush voltará a trabalhar no jornal no final de janeiro —ou seja, ficará suspenso por dois meses, sem receber seus vencimentos. A única mudança é que ele deixará de cobrir a presidência.

A investigação, conduzida por uma advogada do jornal, incluiu entrevistas com 30 pessoas em NY e Washington, do "New York Times" e de outros lugares.

"Thrush se comportou de uma maneira que nós não toleramos. Mas apesar de acreditarmos que ele tenha se comportado de forma ofensiva, decidimos que ele não merece ser demitido", disse Baquet.

O editor-executivo do "NYT" disse que Thrush passaria por treinamento para "melhorar sua conduta no local de trabalho".

"Entendemos que nossos colegas e o público em geral estão tentando entender o que constitui comportamento sexualmente ofensivo no local de trabalho e quais consequências são apropriadas", disse Baquet.

"Cada caso precisa ser avaliado com base nas circunstâncias individuais. Acreditamos que essa é a reposta apropriada no caso de Glenn."

Será que foi a decisão certa?

Havia atenuantes no caso de Thrush: ele não era chefe de nenhuma das mulheres que o acusou, e não trabalhava no "NYT" na época.

Mas muitos acham que o jornal errou ao poupar o funcionário. O jornal deu furos importantes ao expor acusações de assédio contra Weinstein e o senador democrata Al Franken, que renunciou.

No entanto, quando a acusação atingiu a própria redação, o jornal limitou-se a dizer que havia investigado, não via motivo para demissão, e não deu mais detalhes —isso pode até prejudicar a credibilidade do jornal em sua cobertura sobre assédios sexuais.

No mesmo dia em que o jornal anunciou a "pena" de Thrush, o colunista conservador Bret Stephens, do "New York Times" (ex-Wall Street Journal), escreveu uma coluna em defesa do jornalista, intitulada "Quando o #MeToo vai longe demais".

Stephens se referiu a ator Matt Damon, criticado após dizer em uma entrevista: "Existe uma diferença entre dar um tapinha na bunda de alguém e estupro ou abuso sexual de crianças, certo? Ambos os comportamentos precisam ser erradicados, não há dúvida, mas não se pode por tudo no mesmo saco, certo?"

A atriz Minnie Driver rebateu Damon. "Não existe hierarquia de abuso, não se pode dizer que ser estuprada é muito pior do ter um homem mostrando o pênis para uma mulher. Não dá para dizer a essas mulheres que uma deve se sentir pior que a outra."

Como Driver, várias feministas enfatizaram que esse tipo de argumento, de que é muito diferente passar a mão, paquerar ou estuprar, é a conversa errada. Nada disso é admissível, ponto.

Em sua coluna, Stephens discorda, e argumenta que "todas as sociedades fazem necessárias distinções morais entre crimes hediondos e delitos, pecados mortais e menores. Um assassino é pior que um ladrão. Um traficante de drogas é pior que um usuário."

O colunista sai em defesa de Thrush. "Será que realmente mereceria decapitação profissional? Um pedido de desculpas ou suspensão de um mês não seriam suficientes?"

E continua. "Não temos a capacidade moral de distiguir entre comportamento sexual agressivo e predatório e uma trapalhada romântica habitual? Entre um padrão de comportamento abusivo e maus momentos que não são característicos de um homem bom? E será que as empresas realmente têm os recursos, ou o direito, de policiar e julgar o comportamento privado de seus empregados?"

Mas aí é que a conversa fica perigosa. Em que mundo uma pessoa lamber a orelha da outra, do nada, é uma "trapalhada romântica habitual"? Como uma pessoa que é conhecida por suas abordagens inconvenientes é uma boa pessoa em um mau momento?

Para a ativista feminista e colunista do "Guardian" Jessica Valenti, existe um motivo para os homens ficarem insistindo no discurso do "Não é tão ruim quanto o Weinstein".

"Quanto mais as denúncias de assédio se aproximam do comportamento deles ou de suas crenças sobre as mulheres, com mais medo eles ficam", disse ela no Twitter.

Para ela, não existem nuances, nem zona cinzenta.

"Tudo isso é ruim e tudo tem que parar. As mulheres estão preocupadas porque homens vão apontar para o comportamento de Weinstein e dizer que qualquer ato que não seja tão grave quanto estupro ou violência, 'não é tão mau'."

Mas será que alguns desses homens merecem uma chance de redenção? Quem merece ser demitido?

Acho que ninguém tem essas respostas.


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