Folha de S. Paulo


Curdos ainda estão longe de realizar o sonho do país próprio

Quase cem anos atrás, os curdos chegaram bem perto do sonho do país próprio, com o efêmero Tratado de Sévres.

O povo que hoje se espalha por quatro países —Irã, Turquia, Iraque e Síria— e chega a 30 milhões, na época era parte do Império Otomano.

Os otomanos foram derrotados na Primeira Guerra Mundial e tiveram seu território repartido entre as potências. E um dos acordos firmados na época, o Tratado de Sévres, determinava que os otomanos renunciariam a todos os territórios que não eram originalmente turcos e dava autonomia ao Curdistão, prevendo um plebiscito.

Safin Hamed/AFP
Curdos comemoram plebiscito sobre independência em Irbil, capital do Curdistão iraquiano
Curdos comemoram plebiscito sobre independência em Irbil, capital do Curdistão iraquiano

A alegria foi fugaz. A população turca se revoltou contra o tratado, que impunha enorme perda territorial, e esse foi o estopim da guerra da independência turca.

Em 1923, as potências assinaram o Tratado de Lausanne, que nem sequer mencionava a existência dos curdos.

O atual plebiscito de independência do Governo Regional do Curdistão no Iraque também parece um sonho fugaz de país próprio.

A região do norte do Iraque conhecida como GRC, ocupada pelos curdos, conquistou autonomia em 1991, com incentivo dos americanos. Mas os curdos passaram a pleitear independência total de Bagdá e enfrentam oposição não só do governo iraquiano mas também de outros países como Turquia e Irã, onde há minorias curdas e temor de movimentos separatistas.

Para Bagdá, uma secessão curda implicaria perda de território e de boa parte da produção de petróleo do país. Os curdos reivindicam várias áreas que foram conquistadas pelos soldados peshmerga durante o combate ao Estado Islâmico (EI). Entre elas está Kirkuk, cidade produtora de petróleo com população árabe, cristã e turcomena, contrária ao domínio curdo.

O plebiscito não é vinculante, e o presidente do GRC, Massoud Barzani, quer usar o resultado para se cacifar em negociações com o governo central em Bagdá e para conquistar apoio interno.

Mas o governo xiita em Bagdá não vai aceitar pacificamente. O Parlamento iaquiano está pedindo que o primeiro-ministro Haider al-Abadi envie tropas para ocupar os campos de exploração de petróleo no GRC. Bagdá também afirmou que vai fechar os aeroportos do GRC, em Irbil e Sulaimaniya.

Barzani também melou as relações amigáveis —e economicamente convenientes— com o governo turco ao insistir no plebiscito.

O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, afirmou que o plebiscito é "ilegítimo" e ameaça cortar o cordão umbilical dos curdos iraquianos com o mundo. O GRC exporta seu petróleo através de um oleoduto que passa pela Turquia.

"Vamos ver como o GRC vai transportar seu petróleo e onde vai vendê-lo", disse Erdogan. "Somos os donos da torneira. No momento em que fecharmos a torneira, acabou."

Os EUA deram corda para os curdos, armando e equipando os peshmerga iraquianos e a milícia curda síria YPG na luta contra o Estado Islâmico, mesmo diante de enormes protestos de Erdogan —que acusa a YPG de ser um braço do PKK, o Partido dos Trabalhadores Curdos, considerado terrorista.

E como salvadores da pátria contra os extremistas do EI —o Exército iraquiano protagonizou um vexame épico em 2014 — os curdos não querem abrir mão dos territórios conquistados e acham que merecem apoio ao pleito pela independência como reconhecimento por seu papel na guerra contra a facção terrorista.

Mas, por enquanto, os únicos a declararem apoio formal à independência dos curdos iraquianos foram os israelenses —o que não é exatamente um incentivo para os demais países da região.

Os americanos já disseram estar "profundamente decepcionados" com a decisão de levar adiante o plebiscito, apesar de elogiarem a "relação histórica" com os curdos. Ou seja, amigos, amigos, negócios à parte. Para lutar contra o EI, tudo bem, mas comprar briga com Bagdá e Turquia, aí já é demais.


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