Folha de S. Paulo


Por um recall do prêmio Nobel da líder de Mianmar, Aung Suu Kyi

No ano passado inteiro, 363.348 refugiados chegaram na Europa. Quilômetros de reportagens foram escritos sobre esses refugiados, inúmeros vídeos produzidos, incontáveis apelos internacionais foram feitos.

Nas últimas três semanas, mais de 422 mil pessoas fugiram de Mianmar para buscar refúgio em Bangladesh.

É como se toda a população de Santos fugisse da cidade a pé, tentando escapar da morte.

Há grandes chances de o leitor nem ter ouvido falar no drama dos refugiados rohingya de Mianmar, simplesmente porque a imprensa cobre pouco o tema e a comunidade internacional parece focada demais nas bravatas de Donald Trump e Kim Jong-un para prestar atenção na tragédia birmanesa.

Os rohingyas são uma minoria que vive (e é perseguida) em Mianmar. Em um país majoritariamente budista, eles são muçulmanos. O governo birmanês considera grande parte dos rohingya imigrantes ilegais vindos de Bangladesh, embora eles vivam há décadas em Mianmar, e bloqueiam acesso a educação e assistência médica.

No dia 25 de agosto, o recém-criado Exército de Salvação Arakan Rohingya (ARSA, em inglês), uma milícia extremista rohingya, atacou diversos postos policiais e bases militares no Estado de Rakhine.

A retaliação das forças armadas de Mianmar foi brutal –queimaram vilarejos e mataram rohingya de forma indiscriminada. É impossível saber exatamente o que aconteceu ou socorrer aqueles que continuam em Rakhine, porque o governo de Mianmar proíbe o acesso de organizações humanitárias à região.

Os mais de 420 mil rohingyas que fugiram de Mianmar vivem agora em condições subumanas em campos improvisados em Bangladesh, um país muito pobre.

Os Médicos Sem Fronteiras emitiram um comunicado pedindo um aumento maciço da ajuda humanitária em Bangladesh para evitar um desastre de saúde pública após a chegada dos refugiados. A maioria dos rohingya estão em campos improvisados, sem acesso a saneamento básico, assistência médica ou comida. A cobertura vacinal entre os rohingya é muito baixa, então há grande possibilidade de epidemias de sarampo e cólera.

O governo de Bangladesh quer que Mianmar receba de volta os rohingya.

Durante semanas, a líder de Mianmar, Aung San Suu Kyi, manteve silêncio ensurdecedor sobre a tragédia dos rohingya. Quando resolveu falar, nesta terça-feira (19), disse que a maioria dos vilarejos rohingya não tinha sido afetada, e não criticou os militares pela violência, temendo se indispor com o Exército, que tem muito poder no país.

Em conversa com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, Aung disse, sobre a violência contra os rohingya: "há terroristas por trás de um iceberg de informações falsas".

A ONU discorda –chama a violência contra os rohingyas de "caso clássico de limpeza étnica".

Aung ganhou o prêmio Nobel da Paz em 1991 por sua luta pela democracia em Mianmar, que a levou a enfrentar a junta militar que governou o país de forma ditatorial por anos e a encarar anos de prisão domiciliar.

Canonizada em vida, Aung é um caso clássico de Nobel prematuro (alô Henry Kissinger, Barack Obama, De Klerk, e outros)

Para sorte dela, não existe recall de prêmio Nobel da Paz.


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