Folha de S. Paulo


Depois da votação em Brasília, só dona Diva salva

Bruno Santos/Folhapress
PARATY,RJ, BRASIL, 28-07-2017: Terceiro dia da 15ª FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Na foto, a professora Diva Guimarães (77). (Foto: Bruno Santos/ Folhapress) *** FSP-ILUSTRADA *** EXCLUSIVO FOLHA***
A professora aposentada Diva Guimarães, 77, fez desabafo durante a Flip

Depois do ápice de falta de vergonha na cara que foi a votação de quarta-feira em Brasília, só dona Diva salva.

A professora aposentada Diva Guimarães, 77, foi alçada ao estrelato durante a Flip deste ano, quando fez o ator Lázaro Ramos chorar de emoção e foi ovacionada por mais de 500 pessoas com um tocante depoimento sobre racismo. O vídeo de seu depoimento já tem mais de 10 milhões de visualizações.

Diva começou a trabalhar aos cinco anos, é neta de escravos e filha da lavadeira. "Quando eu era criança, as freiras me contaram uma história de como Deus abençoou um rio e mandou todos os homens tomarem banho nele. Os mais trabalhadores e inteligentes chegaram primeiro, mergulharam no rio e saíram brancos. Já os mais preguiçosos chegaram tarde e só havia um restinho de água. Por isso continuaram negros, só com a palma das mãos e a planta dos pés brancos", disse, entre lágrimas. "Os negros não são preguiçosos, este país vive hoje porque meus antepassados trabalharam muito", disse a aposentada, que foi aplaudida de pé.

"Sou uma sobrevivente pela luta e pela educação", disse. Ela contou que a mãe insistiu que ela estudasse e lavava roupa em troca de material escolar. Diva se formou e trabalhou como professora de educação física durante 40 anos, além de alfabetizar crianças e adultos.

Uma semana depois do depoimento na Flip, Diva continua com sua vida pacata de professora aposentada em Curitiba. Ou quase pacata. Ela ainda não conseguiu desfazer a mala de sua viagem a Paraty, de tão ocupada que anda. São inúmeras entrevistas por dia. Não teve tempo para começar a ler o livro que ganhou de Conceição Evaristo, escritora que ela conheceu na Flip. Foi sondada por uma grande editora para escrever um livro e recebeu inúmeros convites para palestras.

No momento, ela só pensa em descansar. Por conta da emoção dos últimos dias, tem sofrido ataques de asma frequentes.

Viu só uma parte da votação de quarta-feira, em que deputados impediram que o presidente Michel Temer fosse investigado por corrupção. "Eu sabia que o conchavo estava pronto, mas mesmo assim, fiquei muito mal. Todo mundo viu que ele comprou votos. Como vamos educar os jovens deste país, todo mundo vai se achar no direito de fazer a mesma coisa", diz.

Dona Diva tem consciência da fugacidade da fama. O Brasil tem tradição de se focar em um tema e, dois dias depois, esquece-lo completamente, ela diz. E ela prefere assim. "Quero continuar na sombra, sou só professora."

Mas Diva conta que várias jovens têm vindo falar com ela para contar que incluíram a discussão do racismo em suas aulas e que passaram a combater essa imagem falsa de que o Brasil é um país sem preconceitos. "Só por isso, já valeu a pena. Conseguir mudar a cabeça de uma única pessoa já é uma grande coisa."


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