Folha de S. Paulo


Famintos e esquecidos

Siegfried Modola - 25.fev.2017/Reuters
Refugiados aguardam para serem registrados no programa de comida da ONU no Sudão do Sul
Refugiados aguardam para serem registrados no programa de comida da ONU no Sudão do Sul

O complexo de campos de refugiados de Dadaab, no Quênia, tem 245 mil pessoas. Mais de 95% são somalis que fugiram da seca, da fome, da guerra e do terrorismo da milícia extremista Al Shabab.

Durante mais de 20 anos, Dadaab foi o maior campo de refugiados do mundo. Recentemente foi ultrapassado por Bidi Bidi, em Uganda, onde o fluxo maciço de sul-sudaneses levou o campo a inchar para 270 mil pessoas.

A fome na Somália, no Sudão do Sul, na Nigéria e no Iêmen ameaça 20 milhões de pessoas. Segundo a ONU, trata-se da maior crise humanitária da história. Só na Somália e no Sudão do Sul, 13,5 milhões estão passando fome. Há o perigo de uma situação semelhante à de 2011, quando 250 mil pessoas morreram de inanição na Somália.

E diante dessa catástrofe iminente, como reage a comunidade internacional? A ajuda para a África está encolhendo, em vez de aumentar.

Usemos o exemplo do Quênia, que absorve boa parte dos centenas de milhares de refugiados somalis e sul-sudaneses.

No ano passado, dos US$ 272 milhões necessários para o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur, administrar os campos do Quênia, só 38,4% foram doados. Mais de 60% das doações vieram dos EUA.

Neste ano, de acordo com relatório do Acnur de 14 de fevereiro, dos US$ 215,2 milhões necessários para 2017 (incluindo os recursos específicos para cuidar das crises humanitárias do Sudão do Sul e da Somália, que têm reflexo no Quênia), só 2% haviam sido doados. Os Estados Unidos não haviam doado nenhum centavo. Houve redução no número de refugiados nos campos em Dadaab porque o governo queniano acelerou um processo de repatriação "voluntária" de somalis.

A situação do campo, administrado pelo Acnur, é alarmante.

De dezembro de 2016 até abril deste ano, o World Food Program (WFP), que distribui os alimentos para os refugiados no campo, cortou a "ração" pela metade, por falta de recursos. As refeições com lentilhas, farinha, feijão e óleo eram distribuídas a cada quinze dias, mas os refugiados passaram a receber seus alimentos apenas uma vez no mês.

Em abril, alguns doadores reagiram aos apelos do WFP, entre eles os EUA, e a distribuição voltou ao normal. Mas pode voltar a ser reduzida no mês que vem.

Como se tudo isso não bastasse, o presidente Donald Trump já anunciou que um dos principais alvos de corte no Orçamento americano é a ajuda externa, que deve cair mais de 30%. Segundo documento preliminar obtido pela Foreign Policy, os recursos americanos para o Quênia podem cair 1.8% neste ano, embora as necessidades estejam crescendo muito por causa das crises na Somália e Sudão do Sul.

No Sudão do Sul, a ajuda sofreria um corte de 11,7%. Só para a Somália haveria aumentos de recursos, basicamente porque os EUA voltariam a fazer doações. Na fome de 2011, o governo americano cortou a ajuda para não financiar indiretamente o Al Shabab, que desviava parte dos alimentos. Esse corte de doações piorou uma situação que já era grave.

Enquanto isso, nos EUA, o governo se prepara para destinar mais US$ 120 milhões para cobrir os custos de proteção (com serviço secreto e outros) do presidente Donald Trump e sua família. Como a primeira família divide seu tempo entre três lugares –Casa Branca, Trump Tower, em Nova York, e Mar a Lago, na Flórida– aumentaram muito os custos.

Só com o aumento das despesas com a segurança da primeira família no glamour de NY e Palm Beach seria possível cobrir quase metade do orçamento do Acnur para o Quênia.


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