Folha de S. Paulo


Negacionistas do aquecimento global, bem-vindos à realidade no Quênia

Gostaria de convidar o presidente americano Donald Trump e outros ilustres negacionistas do aquecimento global para visitar o vilarejo de BP1, na fronteira entre o Quênia e a Somália.

BP1 vem de Border Point 1, o primeiro ponto dessa que é uma das mais voláteis fronteiras do mundo, com frequentes ataques do Al Shabaab, milícia extremista somali.

Thomas Mukoya - 16.jul.2011/Reuters
Somalis se protegem da poeira ao chegarem ao campo de refugiados de Dadaab, no Quênia
Somalis se protegem da poeira ao chegarem ao campo de refugiados de Dadaab, no Quênia

O chefe de BP1, Mohammed Salat, 33, nos recebe para conversar junto com os "elders", os mais velhos e mais respeitados do vilarejo. O BP1 é uma coleção de manyattas, casas feitas de madeira e espinhos e cobertas com sapé e lona cor de laranja doada por organizações humanitárias.

A vida aqui não é fácil. A maioria das pessoas só come uma refeição por dia, diz o chefe. Normalmente, arroz, feijão e milho —não tem nem ugali, o onipresente purê de milho.

Onde fica condado de Mandera, no Quênia

No condado de Mandera, onde fica o BP1, a taxa de analfabetismo é de 75%. Não há estrada asfaltada. Mais de 50% das crianças estão desnutridas. Há apenas um médico por 114 mil habitantes.

As secas estão cada vez mais longas. Isso é péssima notícia para essa população nômade, que vive de seu rebanho de cabras, ovelhas e gado bovino. Os pastores de BP1 agora precisam andar durante 2 ou 3 dias com seus animais para chegar até os pastos mais próximos, em Omar Jillow, a 30 quilômetros. Todo o resto secou.

Alguns plantam feijão, milho e tomate. Como a região é árida, eles dependem do rio Dawa, na fronteira com a Etiópia. O Dawa é intermitente: passava dois meses e meio do ano seco e, nos restantes, era usado para irrigação e consumo. Nos últimos anos, o rio ficou seco durante quatro meses. Mesmo agora, no início da estação chuvosa longa, está barrento, não serve para irrigação.

As comunidades são muçulmanas. A maioria dos homens tem mais de uma esposa. A taxa de natalidade no condado é de cinco filhos, mas, nos vilarejos, é bastante comum encontrar mulheres que geraram dez filhos.

"Filhos são recursos", explica-me o chefe, que tem duas mulheres e dez filhos. "Nós temos muitos filhos porque muitos morrem. Aí uns viram advogados, outros professores, e alguns viram terroristas ou ladrões. Ter muitos filhos aumenta as possibilidades."

Salat se horroriza ao ouvir que tenho só um filho.

"Por que? Mas e se ele virar ladrão ou terrorista? Você não vai ter opções", diz.

"Você precisa ter mais filhos, para eles poderem te ajudar. Ainda dá tempo de você ter uns três ou quatro antes da menopausa."

Digo a ele que nunca esperava discutir menopausa com o chefe de um vilarejo na fronteira do Quênia com a Somália.

Ele dá uma gargalhada, e diz: "Vocês católicos não falam sobre isso? Eu era professor de biologia."

Salat volta a ficar sério.

"A maioria das pessoas daqui só come uma vez por dia, quando come. Nossa terra não serve mais. Isso aqui é o aquecimento global."


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