Folha de S. Paulo


Recordar é viver: a Síria de 2017 é o Iraque de 2003?

Ouvindo um programa na National Public Radio alguns dias atrás, fui transportada pelo túnel do tempo.

"Eu achei muito impressionante, algumas pessoas diriam surpreendentemente impressionante. Organizar tudo isso tão rapidamente e fazer tão bem, acho que é algo que deve nos deixar muito satisfeitos, como americanos. Foi limitado e proporcional, mas, mesmo assim, enviou uma mensagem muito forte."

Quem falava era Paul Wolfowitz, aquele que era vice-ministro de Defesa quando os EUA invadiram o Iraque, em 2003, aquele que cuspia no pente para ajeitar o cabelo. O neoconservador não se continha. Elogiava animadamente a coragem do presidente Donald Trump e sua decisão máscula de atacar a base síria de onde teriam decolado aviões que fizeram um ataque químico contra civis.

Como em 2003, era um ataque necessário –afinal, o ditador fulano (qualquer um, complete o pontilhado) tem armas de destruição em massa.

Podemos aqui usar uma fala de Wolfowitz de 2003 :

"Por motivos burocráticos, nós concordamos em uma questão, armas de destruição em massa (como justificativa para invadir o Iraque), porque era a única com a qual todos concordavam."

Os EUA têm certeza, seguindo relatórios de inteligência de vários países, que foi Assad quem usou as armas químicas no ataque de Khan Sheikhoun.

"A Rússia está isolada. Os fatos estão do nosso lado", disse o porta-voz Sean Spicer, garantindo que a Rússia está equivocada ao defender Assad e dizer que ele não foi o autor do ataque que matou 80 pessoas.

Um relatório do governo Americano afirma que os EUA têm certeza de que o autor do ataque foi Assad, baseando-se em "inteligência de sinais e geoespacial, análise laboratorial de amostras fisiológicas coletadas de diversas vítimas, além de uma quantidade significativa de relatos."

Ou, na versão 2003, com a palavra Colin Powell, então secretário de Estado americano, garantindo ao Conselho de Segurança da ONU que Saddam Hussein tinha as fatídicas armas de destruição em massa:

"Essas não são alegações. São fatos e conclusões baseadas em inteligência sólida."

E mais:

"Os fatos e o comportamento do Iraque mostram que Saddam Hussein e seu regime estão escondendo seus esforços para produzir mais armas de destruição em massa."

Bom, mas ninguém quer tirar o Assad do poder. Já sabemos o que pode acontecer quando potências estrangeiras derrubam um ditador - resta o caos, como na Líbia e no Iraque.

Ou não?

"Se queremos a paz na Síria, não podemos deixar Assad no poder", disse Wolfowitz na mesma entrevista à NPR.

E Nikki Haley, embaixadora dos EUA na ONU, concorda:

"Achamos que vai haver mudança de regime, porque todos verão que Assad não é o líder que deveria estar na Síria."

Assad foi o autor do ataque químico contra civis? Foi a oposição? Os russos?

Só sei de uma coisa: é preciso cuidado com as certezas.


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