Folha de S. Paulo


A farsa do "Estado profundo" nos EUA

Olivier Douliery/CNP/Zumapress/Xinhua
O presidente dos EUA, Donald Trump, participa de homenagem à Irlanda no Congresso, em Washington
O presidente dos EUA, Donald Trump, participa de homenagem à Irlanda no Congresso, em Washington

O venezuelano Hugo Chávez xingava George W. Bush e seu "cheiro de enxofre"; sucessivos governos iranianos vituperavam contra o "Grande Satã" americano, o turco Recep Tayyip Erdogan tem o clérigo "golpista" Fethullah Gülen e Donald Trump põe tudo na conta da imprensa.

Não, calma. Além da imprensa, Trump arrumou outro culpado número um para toda e qualquer coisa —o "Estado profundo".

Como escreveu o estrategista George Friedman, a expressão "Estado Profundo" soa nefasta, sugere que "uma força unida e incrustada no governo tem uma agenda própria e luta para minar as decisões de presidentes eleitos".

O entorno de Trump tem certeza absoluta de que um Estado paralelo trabalha incessantemente para sabotar o presidente.

Trumpistas acreditam que os funcionários públicos de carreira estão tentando minar o governo de Trump com vazamentos que derrubam integrantes do gabinete, questionamentos judiciais como os que bloquearam o veto a muçulmanos e sua versão 2.0, insurreições contra o desmantelamento de regulamentações ambientais e financeiras.

Segundo o site Politico, os assessores mais próximos do presidente americano estão absolutamente paranoicos em relação a vazamentos. Eles guardam os celulares em gavetas quando chegam em casa, por medo de estarem grampeados. E ficam mudos durante reuniões, temendo que alguém vaze seus comentários para a imprensa.

O porta-voz Sean Spicer, conhecido por sua delicadeza ímpar, confiscou os celulares de pessoas da sua equipe na semana passada para vistoriá-los e descobrir quem estava passando informações para a mídia.

Vazamentos sobre contatos com autoridades russas já derrubaram o ex-assessor de Segurança Nacional, Michael Flynn, e comprometeram o secretário de Justiça, Jeff Sessions.

Colaboram para a sensação de perseguição reportagens como a veiculada pelo "New York Times", dizendo que os funcionários indicados por Obama deixaram "pistas" para que se descobrisse a conexão russa da campanha de Trump.

Ávido consumidor de teorias da conspiração, Trump tuitou recentemente, sem nenhuma prova, que Obama tinha grampeado seu telefone, e mencionou o macartismo e o caso Watergate.

Mas como o Grande Satã e Bush e o enxofre, o "Estado profundo" de Trump nada mais é do que um bicho papão muito conveniente.

O termo "Estado profundo" foi usado recentemente em governos autoritários como a Turquia, o Egito e o Paquistão. Mas nesses países, de fato, atividades de certos Estados paralelos frequentemente solapam governos.

Nos Estados Unidos, falar de "Estado Profundo" é ridículo. Existe, sim, uma massa de funcionários públicos que estão descontentes com muitas mudanças propostas por Trump.

Eles estão recorrendo a instrumentos legítimos de resistência, seja no Judiciário, Legislativo ou no Executivo —e funcionam como um contrapeso ao poder do presidente.

Obviamente a comunidade de inteligência deve estar de posse de vários documentos comprometedores. Só os mais ingênuos achariam que o FBI e a CIA não grampeiam todo mundo.

Mas vazamentos são uma forma de tentar influenciar políticas —quem não se lembra das fotos dos militares torturando detentos na prisão iraquiana de Abu Ghraib e como isso acabou expondo as tais "técnicas aperfeiçoadas de interrogatório", esse maravilhoso eufemismo para tortura cunhado no governo W. Bush?

Cada um luta com a arma que tem. Para esses funcionários públicos, a arma é divulgar informação.


Endereço da página:

Links no texto: