Folha de S. Paulo


Acordo UE-Turquia passa mensagem de que a proteção aos refugiados pode ser terceirizada, diz HRW

Louisa Gouliamaki - 21.dez.2016/AFP
Crianças do campo de refugiados de Ritsona, na Grécia, formam fila para pegar o ônibus para a escola
Crianças do campo de refugiados de Ritsona, na Grécia, formam fila para pegar o ônibus para a escola

Neste domingo (18), foi comemorado o Dia Internacional dos Migrantes, embora nada haja para celebrar. Para marcar a data, publico uma entrevista que fiz com Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch, sobre a questão dos refugiados.

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Qual é a avaliação que você faz sobre o acordo UE-Turquia (em março, fecharam o acordo de "um entra, um sai": para cada sírio devolvido pela Grécia à Turquia, a UE se comprometia a receber um sírio que tivesse pedido refúgio e estivesse esperando na Turquia), oito meses depois de ele ser assinado? Quais os resultados práticos?
 
O acordo baseia-se na premissa equivocada de que a Grécia e a UE não precisam avaliar as necessidades particulares de proteção das pessoas que chegam pelo Mar Egeu, alegando que a Turquia é um "país seguro para refúgio".

Não é. A Turquia impôs uma série de restrições à Convenção internacional de refugiados de 1951. Não europeus, por exemplo, não podem ser plenamente reconhecidos como refugiados.

Os sírios têm um regime de proteção temporária, mas enfrentam obstáculos para registrarem-se ou acessarem educação, emprego e serviços de saúde. Os iraquianos e afegãos, e de fato todos os outros não-europeus, têm pouca chance de gozar de proteção efetiva como refugiados.

E, embora a Turquia tenha sido generosa em acolher mais de 2,5 milhões de refugiados sírios, desde março de 2015 praticamente fechou suas fronteiras com a Síria e têm, com violência, mandado de volta mulheres, homens e crianças fugindo da violência naquele país.

Na prática, o acordo produziu pouco efeito em relação ao retorno de sírios à Turquia. Desde que entrou em vigor, nenhum sírio foi "devolvido" em razão da justificativa da Turquia ser um país seguro.

Além disso, o Presidente (turco) Recep Tayyip Erdogan está muito perto de suspender as barreiras que hoje impedem muitos refugiados de saírem, pois não acredita que a UE cumprirá sua parte do acordo de conceder aos cidadãos turcos isenção de vistos e de abrir caminho para a adesão da Turquia à UE.

O número de pessoas que tentam chegar à Europa caiu, mas parece muito provável que vai subir novamente na primavera europeia.

Além dos poucos resultados práticos e os riscos apontados, o acordo causou danos significativos. As autoridades gregas instituíram uma política formal de detenção automática para os que chegam por via marítima nas ilhas do mar Egeu.

Embora essa política tenha sido flexibilizada, ela ainda existe formalmente, e hoje, mais de 15 mil pessoas estão vivendo em campos muito ruins e inseguros à espera de decisões sobre seus pedidos de refúgio. Estima-se que cerca de 60 mil migrantes e solicitantes de refúgio estejam presos na Grécia.

O acordo da UE com a Turquia também transmitiu a mensagem para o mundo de que a proteção aos refugiados pode ser mercantilizada, terceirizada e bloqueada. Ele influenciou outros países que têm recebido centenas de milhares de refugiados por ano a repensarem sua hospitalidade.

Em maio, por exemplo, o governo do Quênia anunciou planos para acelerar o repatriamento de refugiados somalis e fechar o campo de Dadaab, o maior campo de refugiados do mundo.

Desde julho de 2016, a polícias e as autoridades paquistanesas intensificaram a pressão contra os afegãos que vivem no Paquistão. Em setembro, o Líbano propôs um plano para começar a devolver sírios a uma "zona segura" dentro da Síria a partir de janeiro de 2017.
  
Apesar de o número total de refugiados chegando à Europa ter caído para quase um terço do que era, o número de mortos explodiu (rota Líbia-Itália). O que fazer?

Com a rota do Mar Egeu fechada, as pessoas estão seguindo a rota mais longa, mais perigosa; também mais pessoas estão vindo da África Ocidental, subsaariana.

Um dos problemas no Mediterrâneo central é que os migrantes que embarcam da Líbia, quando resgatados ou capturados pela guarda costeira, são devolvidos ao país, onde são comumente detidos e expostos a tratamento desumano e degradante, não havendo opções para obter o estatuto de refugiado ou outra proteção.

Algumas medidas urgentes deveriam ser adotadas: priorizar a política de salvar vidas no mar por meio de operações de busca e salvamento ao longo das principais rotas de migração no Mediterrâneo; renovar esforços para operar, com a devida permissão, em águas líbias, para que os navios com bandeira da UE possam auxiliar nas operações de busca e salvamento no país.

Quais as outras crises de refugiados que não ganham tanto destaque na mídia, mas também são muito graves?

Crises graves que não recebem o destaque devido estão no Sudão do Sul, tanto em relação aos refugiados, quanto em relação aos deslocados internos. Também o fluxo de refugiados de Darfur, no Sudão.

Recentemente, o vice-coordenador humanitário em exercício da ONU, Peter Lundberg, alertou que a Nigéria vive "a pior crise humanitária do continente africano", devido ao crescente número de deslocados internos e refugiados fugindo do grupo extremista Boko Haram. Basicamente, a África subsaariana recebe pouca atenção. Também tem a Somália, apesar de ser uma crise melhor conhecida.

Muitos dos países que acolhem a esmagadora maioria dos refugiados do mundo, incluindo a Etiópia, o Irã, a Jordânia, o Quênia, o Líbano, o Paquistão, a Tailândia e a Turquia, têm deixado claro que atingiram o limite da sua capacidade.

Alguns desses países que generosamente acolheram refugiados por anos, ou décadas, passaram a pressionar os refugiados a saírem, fecharam suas portas para os recém-chegados, ou disseram que o farão em breve.
  
Como ajudar os milhões de refugiados que vivem hoje em campos superlotados? O que poderia ou deveria mudar? E como podemos ajudar?
 
Com o tempo, se os refugiados não podem voltar a suas casas, precisam das garantias do refúgio e de que seus direitos serão respeitados onde vivem, incluindo a concessão de cidadania. Mas muitos países que recebem refugiados, particularmente os da linha de frente, não estão dispostos a considerar a integração.

Implementar programas de realocação e reassentamento em países terceiros, com vistas à integração, é de fato uma forma de minimizar os riscos de desestabilização dos países da linha de frente.

Com a eleição de Donald Trump nos EUA, há um grande medo de que a liderança dos EUA no financiamento do Acnur (Agência de Refugiados da ONU) e dos programas de reassentamento caia drasticamente.

Assim, é ainda mais importante que países como o Brasil assumam maior liderança nesse momento de crise, adotando medidas em dois sentidos: manter e aumentar as contribuições financeiras ao Acnur e assumir mais responsabilidade em seu programa de reassentamento.

É difícil imaginar maior contribuição financeira do Brasil em uma situação de crise econômica grave. Entretanto, alternativas como financiamento internacional ou privado para um maior comprometimento com o programa de reassentamento do Acnur devem ser exploradas de maneira séria e com participação da sociedade civil. Para tanto, conversas iniciadas com a Alemanha e a UE devem ser retomadas.

 O governo brasileiro acertou ao facilitar a concessão de vistos para sírios. Mas muitos deles chegam aqui e vão embora, por falta de oportunidades. Idem com os haitianos, muitos estão indo para o Chile ou EUA por falta de empregos. O que o governo deveria fazer?
 
Formas alternativas de financiamento poderiam ajudar o Brasil a oferecer apoio, como a Alemanha faz, para que refugiados encontrem moradia e trabalho.

Poderiam ajudar o Brasil a melhorar a sua capacidade para promover a integração de refugiados, proteger seus direitos e oferecer serviços especiais para aqueles que estão expostos a maior risco de discriminação, abuso e negligência. O Brasil deve voltar a se posicionar como um líder global compassivo e comprometido com a acolhida e integração dos refugiados.
 
Quais são países exemplares hoje em relação a política de refugiados e por que? (Canadá?)

Trata-se de uma lista muito enxuta de países. O Canadá é com certeza um exemplo e anunciou que receberá 300 mil imigrantes ao ano a partir de 2017. Muitos elogiam Uganda, embora o país tenha seus próprios deslocados internos.
 
A cúpula da ONU para refugiados foi considerada insatisfatória. O que deveria ter sido atingido?
 
A cúpula da ONU foi uma decepção. Muita retórica vazia. Em vez de reforçar o apoio e dividir responsabilidades, a cúpula foi preenchida com discursos vagos desconectados com os problemas reais. A segurança das fronteiras e a interrupção da migração irregular prevaleceram nos discursos.

A Cúpula de Líderes no dia 20 de setembro, entretanto, definiu e alcançou alguns objetivos mais concretos, especialmente em relação ao aumento de contribuições humanitárias, embora tenha faltado transparência com relação a esses objetivos e agora muitas dúvidas surjam se, com a presidência de Trump, os EUA continuarão a exercer alguma liderança para que esses objetivos sejam cumpridos.
 
Como os países podem partilhar de forma mais equilibrada a responsabilidade pelos refugiados? Deveriam ser estabelecidas cotas?
 
É bem difícil imaginar países aceitando cotas obrigatórias de reassentamento de refugiados. Uma política como essa será sempre voluntária. Se os EUA retrocederem, outros países terão pouca opção, a não ser compartilhar as responsabilidades de uma forma mais equilibrada.


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