Folha de S. Paulo


Líbia lembra Kafka e torna difícil saber quem é mocinho e quem é bandido

Patrícia Campos Mello/Folhapress
Carros em posto de gasolina em Sirte, na Líbia
Carros em posto de gasolina em Sirte, na Líbia

Estava tudo acertado: tínhamos uma carta de permissão do comandante da guarda costeira da cidade de Misrata para acompanhar uma patrulha de resgate de refugiados saindo da cidade de Al Khoms. Éramos esperados às 8h no porto.

Ao chegar lá, os policiais do primeiro checkpoint disseram que estávamos no lugar errado e nos mandaram para um outro prédio. Era uma colônia de férias. Voltamos ao checkpoint.

Desta vez, o policial informou que sim, era ali a guarda costeira, mas precisávamos de mais uma autorização para entrar. Fomos até administração do porto para conseguir a autorização.

O supervisor não estava, mas um funcionário gentil se ofereceu para nos acompanhar. Chegando no checkpoint, gritos e mais gritos entre o policial e o funcionário. Mas depois da discussão acalorada, exigiram que deixássemos nossos passaportes e nos deixaram passar. Dirigimos por mais 10 metros e outro checkpoint, desta vez da Katiba, a milícia.

Mais demora e discussão. E dez metros depois, mais um. Ufa, agora vamos.

Eis que percebemos um carro branco nos seguindo dentro do porto. E depois aparece outro veículo, vermelho, também nos seguindo.

Este emparelha com nosso carro e dele descem dois milicianos. Tinham barba longa, sem bigode, vestiam túnica comprida e solta. Aos berros, dizem para o nosso fixer, o líbio Abdalla: "Caiam fora agora". Não adiantou mostrar todas as autorizações e dizer que tínhamos uma entrevista marcada pelo comandante da guarda costeira. "Vocês são estrangeiros, caiam fora agora".

Soubemos depois que eles faziam parte da milícia islamista Ansar al Sharia, que controla o porto de al Khoms e o contrabando de armas lá. Polícia, guarda costeira, milícia ou exército têm pouco ou nenhum poder no porto. E no resto do país.

Parece Kafka, mas é a Líbia, um país onde há dois (ou três, dependendo do ponto de vista) governos e milícias locais (islamistas moderadas, extremistas e seculares) controlam as cidades. Após a derrubada do ditador Muammar Gadafi em 2011, o país viveu um breve período de paz e depois mergulhou no caos.

Daqui da Líbia parte a maioria dos refugiados que tentam a arriscada travessia do Mediterrâneo para chegar ao sonho europeu.

Depois do acordo entre a União Europeia e a Turquia em março, o fluxo de refugiados sírios, iraquianos e afegãos em direção à Grécia praticamente estancou (muitos estão detidos na fronteira ou em campos de refugiados superpopulosos, em vez de receber o devido refúgio).

Mas milhares de africanos continuam partindo de barco da Líbia rumo à Itália. Essa rota vem batendo tristes recordes este ano: 2.549 mortos na travessia, diante de 383 na Grecia, segundo a Organização Internacional para Migração.

A tragédia não acaba aí. O Estado Islâmico se aproveitou do vácuo de governo na Líbia e se estabeleceu na costa do país, em Sirte e arredores, a meros 300 quilômetros da Europa. Dezenas de milhares de líbios tiveram de fugir.

Desde o dia 5 de maio, há uma ofensiva da milícia de Misrata (que inclui várias brigadas salafistas que se opõem ao terrorismo islâmico) contra o EI. Nesta quinta-feira, pelo menos 110 ficaram feridos e 13 mortos, entre eles um jornalista líbio.

Em março, ao assumir, o governo de acordo nacional e o primeiro-ministro Fayaz Seraj, apoiados pela ONU, conclamaram as diversas milícias a se unirem para derrotar o EI.

Obtiveram apoio das forças do oeste do país, lideradas por Misrata, mas não do leste, capitaneadas pelo general Khalifa Haftar em Benghazi.

"Depois que derrotarmos o EI, vamos partir para cima das forças do general Khalifa Haftar", disse-me o médico-miliciano Mohamed Lajnef, no hospital de campanha em Sirte, enquanto esperava a chegada de mais feridos nos choques com o EI.

Haftar domina o leste do país e é apoiado pelo parlamento eleito, que fica em Tobruk. Ele está lutando contra milícias islâmicas (moderadas e extremistas) em Benghazi. As milícias anti-Hafter, chamadas de brigadas de Benghazi, têm apoio de Misurata.

Hafter e o parlamento em Tobruk nao reconhecem o governo de acordo nacional e o primeiro-ministro Seraj, apoiados pela ONU e comunidade internacional. Mas ele tem o apoio da Franca, que vem bombardeando as brigadas de Benghazi, e viveu 20 anos nos Estados Unidos - há rumores de que teria trabalhado para a CIA.

EUA e Reino Unido apoiam Misurata na luta contra o EI em Sirte. Mas em Benghazi, Misurata luta ao lado de extremistas do Ansar al Sharia contra Haftar.

Potências ocidentais apoiam Haftar por ele combater extremistas. Mas grande parte dos libios no oeste do pais, especialmente Tripoli e Misurata, opõe-se fortemente ao general e o acusa de querer estabelecer outra ditadura militar.

Fácil de entender, não?

Para completar, a França admitiu a morte de três militares franceses perto de Benghazi. Eles estão apoiando as forças de Hafter contra brigadas islamistas (aliadas a Misrata).

Protestos em Trípoli, Misrata e outtas cidades contra a" invasão francesa" tomaram as ruas nesta quarta-feira.

Enquanto isso, no front em Sirte, um colega jornalista francês foi expulso nesta quarta-feira, acusado de ser espião.

É, está difícil saber quem é mocinho e quem é bandido, se é que isso existe.

Se, para jornalistas em breve estada no país, já é complicado, imagine para os líbios que vivem aqui


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