Folha de S. Paulo


O olho preguiçoso que ignora os refugiados

No documentário Fogo no Mar (Fuocoammare), que venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim e acaba de estrear no Brasil, o menininho italiano Samuele descobre que tem um "olho preguiçoso" e precisa usar um tampão para "re-ensinar" seu cérebro a enxergar.

Samuele vive na ilha de Lampedusa, porta de entrada de milhares de refugiados para o sonho europeu. Ele passa seu tempo atirando com um estilingue contra ninhos de passarinho, aprendendo a enfrentar o mar e seu futuro como pescador e usando rifles imaginários.

Em nenhum momento ele se dá conta da tragédia que se desenrola na ilha.

Filippo Monteforte-25.out.13/AFP
Parte dos imigrantes africanos qeu foram tirados do mar pela Marinha italiana aguardam desembarque na ilha Lampedusa (Itália). *** Some of 219 migrants sit onboard the Italian Navy amphibious assault ship San Marco after being rescued off the island of Lampedusa on October 25, 2013. Two boats were picked up by Italian Navy ships deployed in Italy's new Mare Nostrum search-and-rescue operation, launched after more than 400 migrants drowned in two disasters earlier this month. Nearly 700 refugees were rescued off Sicily in several operations, Italian authorities said on October 25, 2013 as European leaders grapple with the issue of illegal immigration at a European Union summit. In a series of separate rescue bids, coastguards rescued several boats, one of which was carrying 219 people, including 37 children and 43 women, officials said. AFP PHOTO /Filippo MONTEFORTE ORG XMIT: FM1050
Imigrantes africanos retirados do mar pela Marinha italiana após naufrágio aguardam desembarque na ilha de Lampedusa, no sul da Itália

Só nos últimos sete dias, 113 pessoas morreram afogadas tentando cruzar da Líbia até Lampedusa. Mulheres, homens e crianças. Um bebê recém-nascido.

Desde o início do ano, foram 976 mortos nessa rota (28.563 conseguiram chegar).

Para a Itália, vão principalmente refugiados da Nigéria, que sofrem com o Boko Haram, milícia extremista que declarou lealdade ao Estado Islâmico e se notabilizou por sequestrar meninas e transformá-las em mulheres-bomba. Chegam também refugiados de Gâmbia, Guiné, Senegal, Costa do Marfim, Somália e Mali.

Mas essa é apenas uma das rotas para entrar na Europa.

Em 2016, outras 154.862 pessoas chegaram à Grécia vindas da Turquia - e 376 morreram tentando. A grande maioria veio da Síria, seguidos de Afeganistão, Iraque, Paquistão e Irã.

No dia 7 de março, a União Europeia fechou um acordo com a Turquia para "resolver" seu problema de refugiados. Era o chamado "um entra, um sai": para cada sírio devolvido pela Grécia à Turquia, a UE se compromete a receber um sírio que esteja esperando na Turquia.

Depois do acordo, o fluxo de refugiados da Turquia para a Grécia praticamente secou. A média de 2056 pessoas chegando por dia em janeiro caiu para 112 em abril.

Mas como alertaram diversas ONGs, o acordo não resolve o problema.

A média de refugiados chegando diariamente à Itália, vindos da Líbia, subiu de 176 em janeiro para 303 em abril. Em que pese a sazonalidade (os refugiados preferem atravessar nos meses mais quentes), os números provam que o tráfico de pessoas continua em alta.

Por enquanto, como aponta a Organização Internacional para Migrações (IOM, na sigla em inglês), o fechamento da rota dos Balcãs pelo acordo UE-Turquia ainda não teve um grande efeito na rota da Líbia - por lá continuam chegando africanos, e não sírios, iraquianos e afegão.

Mas os traficantes de pessoas são ardilosos e já se posicionam.

"Ainda não há indícios de que as pessoas estão indo para a Líbia, mas dois anos atrás, 42 mil sírios usaram essa rota, e tudo indica que eles irão recorrer novamente a esse caminho", disse Joel Millman, um porta-voz da IOM.

Europeus, americanos, brasileiros: está na hora de nós tirarmos o tampão do olho e começarmos a enxergar.

Não adianta bloquear a entrada dos imigrantes ou devolvê-los para a Turquia se não forem resolvidos os conflitos e a pobreza na Síria, Nigéria, Iraque, Afeganistão.

Parece óbvio, não?


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