Folha de S. Paulo


Decifrando o Estado Islâmico

Em junho de 2014, os jihadistas do Estado Islâmico entraram no radar da mídia ocidental ao tomar em menos de 24 horas a cidade de Mossul, a segunda maior do Iraque, e impor sua violenta versão da lei islâmica.

A facção vinha crescendo desde 2010, mas havia sido subestimada pela maior parte dos analistas, que a consideravam um milícia radical isolada e fadada ao desaparecimento.

Hoje, o Estado Islâmico controla uma área equivalente à Itália, de cerca de 300 mil quilômetros quadrados, no noroeste do Iraque e nordeste da Síria. A facção tem entre 30 mil (estimativa da CIA) e 100 mil (estimativa dos próprios) combatentes.
Escraviza sexualmente mais de 2 mil mulheres da etnia yazidi no Iraque. Ganha destaque na mídia ao decapitar ou executar seus prisioneiros em vídeos, como fez com o jornalista americano James Foley em agosto do ano passado.

Trata-se do movimento jihadista mais bem sucedido da história: mais violento, mais eficiente e maior que a Al Qaeda. Está mudando radicalmente o equilíbrio das forças políticas do Oriente Médio. E é um dos motivos para o êxodo de sírios que vem comovendo o mundo.

"A Origem do Estado Islâmico - o fracasso da 'guerra ao terror' e a ascensão jihadista", do veterano correspondente de guerra Patrick Cockburn, é o livro obrigatório para quem quer entender de onde veio o EI e porque é tão difícil conter essa facção terrorista.

Recém-publicado pela editora Autonomia Literária, com prefácio de Reginaldo Nasser, chefe do departamento de relações internacionais da PUC-SP, o livro mostra como a guerra do Iraque desde a invasão americana em 2003 e a guerra civil síria, desde 2011, essencialmente deram origem ao Estado Islâmico.

Ninguém melhor para ajudar a montar esse quebra-cabeça que o irlandês Cockburn, correspondente do jornal The Independent no Oriente Médio desde 1991 e tido como "o melhor jornalista ocidental cobrindo o Iraque hoje em dia" pelo grande Seymour Hersh.

O livro deixa claro que nenhuma campanha de ataques aéreos dos americanos e seus aliados vai derrotar o Estado Islâmico se não forem equacionadas as questões sectárias que permitiram a expansão do grupo terrorista.

No Iraque, a maioria da população é xiita e era reprimida quando  o ditador sunita Saddam Hussein estava no poder. Os EUA invadiram o Iraque em 2003 e depuseram Saddam.
Depois da retirada americana, em 2011, o ex-primeiro ministro Nouri al Maliki, xiita, passou a perseguir sunitas.
Descontentes, os iraquianos sunitas apoiaram o avanço do EI no início, embora muitos tenham posteriormente se voltado contra as práticas do grupo.

Enquanto isso, na Síria, a Arábia Saudita, Turquia e Catar, rivais do Irã, começaram a armar a oposição para combater o ditador  Bashar al-Assad. Assad segue o alauismo, um ramo do xiismo, e é alinhado com o Irã.

Rapidamente ficou claro que, ao apoiar a oposição supostamente moderada na Síria, as armas e recursos enviados por potências estrangeiras acabaram caindo nas mãos de jihadistas radicais como a frente Al Nusra e o EI.

Ou seja: EUA, UE, Turquia, Arábia Saudita e Catar criaram condições para o surgimento do EI ao sustentar o levante sunita na Síria, que se espalhou para o Iraque, como explica Cockburn.

O jornalista remete à candura habitual do vice presidente americano, Joe Biden, que afirmou em um evento em Harvard em outubro de 2014: "A Arábia Saudita, a Turquia e os Emirados Árabes estavam muito determinados a derrubar Assad e, em essência, provocar uma guerra por procuração entre sunitas e xiitas. O que fizeram? Destinaram centenas de milhões de dólares e dezenas de toneladas de armas a qualquer um disposto a lutar contra Assad. Porém, as pessoas que estavam sendo abastecidas eram da Al-Nusra e Al -Qaeda e extremistas da jihad vindos de outras partes do mundo."

Sobre a política norte-americana de recrutar "moderados" sírios para lutar tanto contra o EI como contra Assad, Biden disse: "os Estados Unidos descobriram não haver nenhum centro moderado na Síria, porque os moderados são compostos de comerciantes, não de soldaos"

Além de ser testemunha ocular de muitos dos episódios narrados no livro, Cockburn também faz análises muito lúcidas sobre a situação política.

Aponta para o fato de que os maiores patrocinadores da jihad no mundo, Arábia Saudita e Paquistão, nunca foram confrontados pelos EUA, que os mantêm como aliados.

A Arábia Saudita dissemina o wahabismo, variante fundamentalista do islamismo que deu origem ao fanatismo da Al Qaeda e do EI.

"A 'wahabização' da corrente principal do islã sunita é um dos movimentos mais perigosos da nossa era", conclui o jornalista.

A edição brasileira tem alguns problemas de tradução: "Quando se trata do Iraque, os americanos gritam uns com ou outros sobre, mas se dão as mãos por baixo" (sobre a mesa, no original) e "milícias curdas yazidi" (não são milícias); infringir perdas (infligir, impor) e grau em Estudos Islâmicos (degree - graduação).

Mas as falhas não chegam a comprometer o livro, que é excelente.


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