Folha de S. Paulo


Serra Leoa: depois do ebola, cheiro de golpe no ar

Como se não faltasse mais nada.

O governo de Serra Leoa, país que é 183 entre 187 no IDH e acaba de perder 3912 pessoas em uma epidemia de ebola (ainda não controlada), volta a flertar com o autoritarismo.

O vice-presidente do país, Samuel Sam Sumana, foi "demitido" em março após se desentender com o presidente Ernest Bai Koroma, e substituído por um vice indicado por Koroma.

Sam Sumana, que era do mesmo partido do presidente, o All People's Congress (APC), foi expulso da legenda depois de ser acusado de tentar criar um partido político rival. Após ser expulso, ele buscou asilo na embaixada americana, dizendo não se sentir seguro no país (a embaixada não quis se envolver no imbróglio).

Na sequência, o governo emitiu um comunicado informando que Sumana havia sido destituído por ter sido expulso do partido e por ter buscado asilo, o que constituiria "abandono" de seu cargo.

Isso depois de uma campanha de difamação em que o vice foi acusado de não ser um "verdadeiro muçulmano" (o país tem maioria a muçulmana e influente minoria cristã).

Uma vez apeado do poder, ele teve sua casa cercada por soldados e até a eletricidade foi cortada.

Sumana ajudou Koroma a ser eleito e reeleito, em 2007 e 2012, com seu forte apoio de leoneses expatriados, muitos nos EUA, e sua força financeira.

O vice recorreu à Suprema Corte do país, argumentando que sua "demissão" é inconstitucional, já que ele foi eleito. Os juízes, indicados pelo presidente, estão analisando o caso.

Para muitos no país, a situação é aterradoramente familiar. Há cheiro de golpe no ar.

"Estão prorrogando o estado de emergência (decretado durante a epidemia de ebola) para ter mais poder e, eventualmente, dar um golpe", diz um observador leonês. "Já prenderam um líder da oposição em Kenema com a desculpa de que ele violou o estado de emergência."

Mohammed Bayoh, 28,é um dos leoneses que acompanha a situação com bastante apreensão.

Conheci Bayoh, 28, em agosto do ano passado. Ele foi nosso motorista e anjo da guarda durante a cobertura em Serra Leoa, no pico da epidemia de ebola.
Bayoh tinha muito medo da doença.

Mas a perspectiva de um golpe e uma guerra civil o assusta ainda mais, disse-me Bayoh, quando nos reencontramos em Freetown, na semana passada.

Serra Leoa viveu uma sangrenta guerra civil entre 1991 e 2002. Mais de 50 mil pessoas morreram e o país foi devastado. O livro "Bem longe de casa - memórias de um menino-soldado", de Ishmael Beah (Companhia de Bolso), é um retrato lancinante do conflito que engolfou o país e transformou crianças em soldados matadores movidos a cocaína.

Bayoh veio do distrito Kono, forte produtor dos chamados "blood diamonds", e um dos principais alvos dos rebeldes na guerra civil.

O irmão de Bayoh, que na época tinha oito anos, foi morto na frente dele pelos rebeldes, com um tiro na cabeça.

O ebola deixou 10 mil órfãos de pai ou mãe no país. A guerra civil deixou mais de 100 mil.


Endereço da página: