Folha de S. Paulo


Um mapa da indigência da política externa

Nesta quinta-feira (12), em uma discussão na FGV com acadêmicos, jornalistas e representantes de governo e sociedade civil, debatemos o Brasil, a cooperação sul-sul e os desafios para a paz e segurança mundial. No debate, não conseguimos abstrair o atual cenário de crise e seus reflexos sobre nossa política externa. O assunto ganhou os jornais nos últimos dois meses, mas vale a pena tentar mapear a situação.

EBOLA
Em agosto do ano passado estive em Serra Leoa por 10 dias. O país vivia uma das piores fases da epidemia de ebola. O Brasil é um dos poucos países que têm embaixada em Freetown, capital de Serra Leoa. A embaixada fez parte da estratégia de expansão de representações brasileiras na África, capitaneada pelo ex-chanceler Celso Amorim e pelo ex-presidente Lula. O presidente Lula abriu 17 embaixadas na África - e outras três foram inauguradas no governo Dilma.
O embaixador brasileiro em Serra Leoa, Jorge Alcazar, estava tentando há um bom tempo conseguir que o Brasil doasse kits de saúde para o país e fizesse outras contribuições. Até outubro, o Brasil tinha feito colaborações pífias, de R$ 1 milhão e cinco kits de saúde. A Venezuela havia doado US$ 5 milhões e a Suíça, US$ 7 milhões. Estados Unidos e Reino Unido
fizeram doações na casa das centenas de milhares de dólares.
Foi só depois de inúmeras reportagens em jornais criticando a falta de ação brasileira que o governo finalmente fez uma doação mais substancial para OMS e conseguiu embarcar suas doações de alimentos. O Itamaraty anunciou a doação de R$ 25 milhões. Mas apesar de o Brasil ter acordado para a magnitude da emergência e necessidade de colaboração, o país poderia ter feito muito mais. O Brasil é referência em combate a doenças infecciosas e poderia ter enviado infectologistas para ajudar os países africanos, como fez Cuba.

REPRESENTAÇÕES NA ÁFRICA
Em janeiro deste ano, vieram à tona vários telegramas de embaixadas e consulados brasileiros ao redor do mundo.
Os postos reclamavam que, por causa do corte de orçamento, não tinham dinheiro para pagar contas de luz, internet, segurança, etc. Na embaixada do Benin, em Cotonou, a situação era especialmente crítica. Sem receber nenhum recurso do governo brasileiro há 50 dias, a embaixada do Brasil em Benin está com apenas US$ 83 (R$ 215) em caixa e chegou a ter o fornecimento de energia cortado.
Na residência, o diplomata responsável recorre a velas e lanternas, porque falta dinheiro para comprar combustível do gerador. Às vezes toma banho de caneca, pois a bomba d'água quebrou e não há recursos para o conserto. Ele teve de pagar a conta de telefone e luz, que estavam atrasadas, do próprio bolso.

CALOTE EM ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
O Brasil não pagou sua contribuição obrigatória à Organização dos Estados Americanos (OEA) no ano passado, de US$ 8,1 milhões. Não se sabe quando e se pretende pagar os US$ 10 milhões da cota de 2015.
O governo brasileiro não contribui financeiramente com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) há cinco anos. O Brasil perdeu direito a voto na Agência Internacional de Energia Atômica, depois de acumular uma dívida de US$ 35 milhões. O país também perdeu seus direitos no Tribunal Penal Internacional após acumular US$ 6 milhões em dívidas.
E o Brasil deve US$ 76,8 milhões para atividades regulares da ONU e US$ 87,37 milhões para operações de paz.

PENÚRIA
O corte de recursos determinado pelo ajuste fiscal do governo este ano, aliado à diminuição progressiva do orçamento do Itamaraty, deixaram a política externa brasileira em situação precária. A participação do orçamento do Itamaraty no total do Executivo caiu quase à metade em 2014 em relação a 2003 -era 0,5%, ou seja, já muito baixa, e caiu para 0,27%. em cima disso, houve um contingenciamento de gastos parte do ajuste fiscal determinado pelo ministro das Fazenda, Joaquim Levy. Olhando para a frente, a expectativa é que haja uma queda no PIB em 2015, com consequente queda na arrecadação tributária.

DEFICIT DE LIDERANÇA
Recentemente, estive no Iraque para cobrir a luta do exército curdo contra o Estado Islâmico. Vários militares e parlamentares me fizeram a mesma pergunta: o Brasil ajudava tanto Saddam Hussein, vendia armas que ele usava para nos atacar, por que não nos ajuda hoje de alguma maneira?

Em 2013, o Brasil foi convidado para participar de uma reunião de alto nível em Montreux, na Suíça, para discutir a crise na Síria. A presidente Dilma preferiu reter o então chanceler Figueiredo no Brasil, para algum compromisso, e mandou um diplomata de menor escalão. Em encontro com uma autoridade americana, ouvi o seguinte, a respeito do episódio: O Brasil lutou tanto para ter um lugar à mesa, e agora não quer participar da discussão.

O Itamaraty, sob a nova gestão, estuda maneiras de manter os postos de forma mais barata, fazendo com que passem a funcionar em quartos de hotel, fechando residências e deixando apenas as embaixadas, entre outras ideias.

Mas o deficit não é apenas orçamentário. Por mais que o Itamaraty encontre maneiras de otimizar seus recursos - e há gordura para ser cortada, ao mesmo tempo em que falta dinheiro para pagar a conta de luz - sem a "vontade" da presidente Dilma Rousseff de investir seu tempo e atenção em política externa, vai ser difícil essa situação mudar.

E para uma presidente que não achava tempo para receber credenciais de embaixadores nos tempos de bonança, vai ser difícil pensar no genocídio de yazidis pelo Estado Islâmico agora, enquanto a Petrobras se desintegra, a base aliada age como oposição e o dólar explode.


Endereço da página: