Folha de S. Paulo


Coitada da diplomata ou coitada da babá?

A prisão de Devyani Khobragade, vice-cônsul geral da Índia em Nova York, gerou uma crise grave diplomática entre Estados Unidos e Índia.

Khobragade é acusada de fraude em pedido de visto e falso testemunho. Ela alegou que iria pagar US$ 4500 mensais a sua babá e empregada doméstica, Sangeeta Richard. Na realidade, pagava US$ 573 –bem abaixo do salário mínimo em NY.

A empregada também afirma ter sido submetida a trabalho escravo –trabalhava de manhã até a noite, sem finais de semana e sem nenhuma folga em meses.

A cônsul foi presa, submetida a revista íntima e encarcerada em uma cela onde estavam "viciados em drogas", segundo ela.

Foi liberada depois de pagar fiança de US$ 250 mil. Se for condenada, pode pegar até 10 anos por fraude em visto e cinco anos por falso testemunho.

A diplomata nega as acusações, e alega que a empregada tentava chantageá-la para ganhar um visto de longo prazo nos EUA e roubou dinheiro e celulares de sua casa.

O governo da Índia entrou em surto. Como assim, uma diplomata indiana vai ser submetida a revista íntima e presa, sendo que deveria ter imunidade?

"Como os EUA iriam reagir se um de seus diplomatas fosse submetido a esse tratamento na Índia?", disse Ravi Sankar Prasad, porta-voz do Partido Bharatiya Janata, principal legenda de oposição.

O governo da índia disse que a diplomata foi "humilhada" e que o tratamento dispensado a ela era "ultrajante".

Em retaliação, o governo indiano vetou todas as importações de alimentos e bebidas alcoólicas pelos funcionários diplomáticos americanos na Índia. Confiscou as identidades deles, dizendo que iria trocá-las por novas, que determinariam diferentes níveis de imunidade.

A população também reagiu. Atearam fogo a uma filial da rede de pizzarias Domino's. Queimaram imagens do presidente Barack Obama em Kolkata (antiga Calcutá) e Hyderabad.

Segundo o promotor de Manhattan Preet Bharara (que, ironicamente, nasceu na Índia), todos os detidos passam por revista íntima, "é padrão para qualquer acusado, rico ou pobre, americano ou não, para garantir que a pessoa não tenha nada possa machucar outros ou ela mesma."

Em toda essa briga, ficou faltando a indignação em relação às condições de trabalho da empregada doméstica. Não?

Nada como um olhar local. Shobhan Saxena, respeitado jornalista indiano que atualmente é correspondente do The Hindu para América do Sul, lembra que esse é o terceiro caso em dois anos envolvendo diplomatas indianos e suas empregadas. Dois anos atrás, o cônsul indiano em Nova York, Prabhu Dayal, foi acusado por sua empregada de "escravidão e exploração sexual". Trabalhava 105 horas por semana e sofreu assédio sexual.

"A reação da Índia à prisão da diplomata em Nova York foi definitivamente exagerada. O ministério das Relações Exteriores da Índia estava simplesmente tentando proteger seu privilégio de levar empregados para os postos no exterior. É padrão fazer dois contratos: um para conseguir o visto do empregado, e outro para o verdadeiro pagamento", disse-me Saxena.

"O governo americano está cansado de diplomatas indianos levando empregados domésticos mal pagos com documentos fraudulentos."

Na Índia, é normalíssimo empregadas domésticas ganharem US$ 50 por mês e serem tratadas como uma raça inferior pelos patrões.

"Quando ouço os debates na TV, fico surpresa que a diplomata é sempre o foco; empregados domésticos são considerados indignos, então a discussão de salários nem vem à tona", disse Madhu Bala, do Jagori, grupo de Delhi que promoves direitos dos empregados domésticos, ao jornal indiano The Hindu.


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