Folha de S. Paulo


'Mirem-se no exemplo...'

No último sábado, fui ver a nova versão de "Gota d'Água", peça escrita em 1975 por Chico Buarque e Paulo Pontes. Nesta versão, o espetáculo foi batizado de "Gota d'Água (a Seco)". O "a Seco" se deve ao "enxugamento" dos personagens e da trilha sonora original, à qual foram acrescentadas outras belas e pertinentes canções, das quais Chico Buarque é autor ou coautor.

Uma dessas canções é "Mulheres de Atenas" (de Chico Buarque e Augusto Boal), magnificamente interpretada no palco pela atriz e cantora Laila Garin. Enquanto Laila cantava, lembrei-me das bobagens ditas por algumas "feministas" em 1976, as quais julgaram machista a letra.

A bobajada internética de hoje, caro leitor, só mudou de roupa. Desde sempre a incapacidade de entender um texto se associa à petulância, à arrogância... Muita gente entendia como apologia à submissão versos como "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas (...) Quando fustigadas, não choram / Se ajoelham, pedem, imploram / Mais duras penas / Cadenas".

Vamos lá: a ironia é uma figura de linguagem por meio da qual se diz o oposto do que efetivamente se quer dizer. "Mirem-se no exemplo..." significa "Não se mirem no exemplo...", isto é, não façam como faziam aquelas mulheres ou façam como elas faziam e vejam o que lhes acontecerá.

Pois bem. Na letra de "Mulheres de Atenas" há muitas passagens preciosas, seja pelo aspecto poético, seja pelo aspecto morfossintático.

Em "Quando eles voltam sedentos / Querem arrancar violentos / Carícias plenas / Obscenas", por exemplo, nota-se o emprego cirúrgico dos adjetivos ("sedentos", "violentos", "plenas", "obscenas"). Alguns reclamam do emprego dessa classe de palavras, que consideram rebarbativa, excessiva etc. Experimente reescrever esse trecho sem os adjetivos. Que tal? As fortes imagens que os adjetivos compõem se desfazem, não?

Vale a pena lembrar que, por se tratar de texto poético, muitas vezes a pontuação fica a critério do escritor, que a utiliza de acordo com o que quer enfatizar (este ou aquele termo, o ritmo dos versos etc.).

Além da pontuação que há na transcrição citada, seria possível pensar, por exemplo, em algo como "Quando eles voltam, sedentos, querem arrancar, violentos, carícias plenas, obscenas" ou ainda "Quando eles voltam, sedentos, querem, violentos, arrancar carícias plenas, obscenas" ou ainda "Quando eles voltam sedentos, querem, violentos, arrancar carícias plenas, obscenas".

Note, por favor, que há uma grande diferença entre "Quando eles voltam sedentos, querem..." e "Quando eles voltam, sedentos, querem...". O caro leitor percebeu a diferença? No primeiro caso, não há vírgula antes de "sedentos"; no segundo, o adjetivo ficou entre vírgulas.

Que diferença essa vírgula faz? Sem ela, indica-se que nem sempre eles voltam sedentos. Quando voltam nesse estado, querem acarrancar... Com as duas vírgulas, "sedentos" é o estado constante deles quando voltam.

O léxico (vocabulário) também é precioso, o que se vê em "cadenas" (que no original espanhol significa "corrente", "cadeia"), "melena" ("cabeleira longa", "madeixa"), "falena" ("borboleta noturna", que no contexto assume metaforicamente outro sentido), "sirena" ("sereia"), "helena" (relativo aos helenos, tribo que deu origem ao povo grego)

E antes que me esqueça: vá ver a peça. Vale (muito) a pena. É isso.

inculta@uol.com.br


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