Folha de S. Paulo


'Tiro à súmula...'

"É tauba de tiro ao álvaro...". Lembrou, caro leitor? Trata-se de um dos versos da letra da genial canção "Tiro ao Álvaro", composta por Oswaldo Molles e Adoniran Barbosa.

O nome da música, é claro, é uma brincadeira com a expressão "tiro ao alvo", que, diferentemente do que muita gente talvez pense, não é o nome de um dos esportes olímpicos (o nome oficial é "tiro esportivo", de acordo com o site rio2016.com).

Pois bem. Assim como existe o "tiro ao alvo", existe o "tiro à súmula", "esporte" recém-criado. Sim, a julgar por um título jornalístico publicado há poucos dias, o "tiro à súmula" é fato cabal. A manchete a que me refiro é esta: "Árbitro relata copo atirado em súmula, e STJD denunciará o Palmeiras". Na "chamada" que havia na capa do site, confirmava-se a existência do novo "esporte": "Juiz relata copo atirado em súmula". Convicção absoluta...

Como sempre digo, a releitura e o "desconfiômetro" bastam para que se evitem patacoadas como essa. Que tal algo como "Na/Em súmula, juiz relata ('menciona', 'cita') copo atirado"? Bem, cá entre nós, mesmo com essa "correção", a manchete fica longe de ser uma maravilha.

Por falar em "súmula", o caro leitor sabe que esse vocábulo é o diminutivo de... Sim, diminutivo (erudito) de "suma", que é o mesmo que "resumo". Você certamente sabe o que significa a expressão "em suma", não? A súmula é um pequeno resumo, uma pequena suma (de uma partida de futebol, no caso).

A terminação "-ula", presente em "súmula", é frequente nos nossos diminutivos. Veja outros exemplos: "válvula" (de "valva"), "película" (de "pele"), "gotícula" (de "gota").

É claro que o que vale para a terminação latina "-ula" também vale para "-ulo": "versículo" (de "verso"), "homúnculo" (de "homem"), "nódulo" (de "nó") e por aí vai.

Convém dizer que o uso específico de certos vocábulos muitas vezes nos tira a percepção da sua formação, do seu significado literal etc. Quando se emprega a palavra "óvulo", quem é que pensa ou lembra que se trata do diminutivo de "ovo"?

Mas voltemos à malfadada manchete que "criou" o "tiro à súmula". Deve ter pesado para a adoção da ordem inadequada uma velha (e má) norma jornalística: empregue a ordem direta; comece sempre pelo sujeito (etc. e tal). Toda ditadura (toda, toda, toda) é mais do que burra, e essa não é diferente. Acredite, prezado leitor: a ordem direta nem sempre é a melhor solução, mesmo em se tratando de títulos jornalísticos, nos quais a dita-cuja muitas vezes gera estragos desnecessários.

Vejamos outro caso: "Esgotado, medicamento Tamiflu tem eficácia contra gripe contestada". A que termo se refere "contestada"? O que se contesta: a gripe ou a eficácia do medicamento? Pelo jeito, a gripe...

Temos aí (para piorar) o bendito verbo "ter", verdadeiro cola-tudo. Que tal fulminá-lo na reconstrução da manchete? Vamos tentar? Lá vai uma sugestão: "Eficácia do Tamiflu contra a gripe é contestada; medicamento está esgotado".

Já sei: ficou maior do que estava, mas... Mas é preciso dar a "esgotado" o devido lugar, que é o de informação acessória, independente da outra, e não de causa da outra.

Com a redação sugerida, evitou-se a contextualmente redundante construção "medicamento Tamiflu" e deu-se a "medicamento" (ao substituir "Tamiflu") o papel de elemento de coesão textual. É isso.


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