Folha de S. Paulo


Amores eventuais

Já faz um bom tempo que não me valho de títulos jornalísticos "estranhos" para traçar as linhas deste espaço. Entra ano, sai ano, entra título, sai título, e a coisa não muda.

Há poucos dias, um site de notícias publicou esta maravilha: "Madonna diz que durante evento ainda ama Sean Penn". É isso mesmo, prezado leitor. Não me enganei, não: "Madonna diz que durante evento ainda ama Sean Penn".

Os tempos são complicados, eu sei; a "qualidade das relações" (leu a recente pesquisa sobre a vida na cidade de São Paulo?) não anda lá essas coisas, de acordo com o que disseram os entrevistados, mas, cá entre nós, amar só durante um evento parece estrambótico demais...

É claro que houve equívoco do redator, que teria evitado o problema com a simples reordenação dos termos ("Madonna diz durante evento que ainda ama Sean Penn"), mas, como não se trata de caso isolado ou esporádico, fica-se com a impressão de que o cuidado com o texto é fator cada vez menos importante.

Às vezes, os erros ficam expostos o dia todo nos sites, o que significa que ninguém relê os textos, ou, se os relê, não capta os erros, o que é ainda mais grave. A mesma situação ocorre em boletins radiofônicos de várias emissoras, repetidos à exaustão ao longo do dia, muitas vezes com o texto rigorosamente igual.

O título deve ser claro, conciso e, sobretudo, não pode exigir do leitor contorcionismos para a sua imediata compreensão. Veja este caso, também recente: "País sabe que escraviza, mas não a gravidade do problema". Estava no mesmo site, como chamada para o texto de um querido blogueiro, do qual sou leitor quase fiel. Há duas ocorrências do verbo "saber" no título, uma explícita e outra implícita. O que se quer dizer é que o país sabe que é escravista, mas não sabe qual é a gravidade do problema.

Mostrei o título a vários colegas. Nenhum deles disse que captou de imediato a mensagem, isto é, todos disseram que foi preciso algum contorcionismo para compreendê-lo, o que significa que para eles (e para mim) o título é ruim, ineficiente.

Esse é o típico caso em que a repetição é praticamente imperativa ("País sabe que escraviza, mas não sabe a gravidade do problema"). Melhor mesmo seria perceber que há uma sutileza de sentido que quase impõe a troca do segundo "sabe" por "conhece" ("País sabe que escraviza, mas não conhece a gravidade do problema"). Lamentavelmente, a velha máxima das redações que diz que "título bom é título que cabe" parece imorredoura.

Há outro fato que merece comentário. Qual é o complemento do primeiro "sabe", ou seja, o que é que o país sabe? Eis a resposta: "que escraviza". Sim, o complemento do primeiro "sabe" é "que escraviza", que, como se vê, é uma oração, já que contém verbo ("escraviza").

E o complemento do segundo "sabe"? É "a gravidade do problema", que, como se vê, não é uma oração.

Se você vai fazer ou já fez algum concurso público, talvez tenha visto no programa de português algo como "paralelismo". Pois o que torna ruim o título é justamente a falta de paralelismo (dois complementos de natureza diferente).

Por acaso você diria algo como "Ela me espera em casa e que eu vá ao cinema com ela"? Ou "Ele sabe que deve cozinhar, mas não a receita do prato"? Há ruído, não? É isso.


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