Folha de S. Paulo


'Por isso é que sabe bem'

Na última sexta-feira, o tema do "Globo Repórter" foi Portugal. Com imagens belíssimas (algumas excepcionalmente belas) e excelentes matérias, o programa foi encantador. O senão ficou por conta dos caracteres que a produção do programa colocou na tela, para "traduzir" a fala dos portugueses que participaram das magníficas reportagens.

Acho no mínimo discutível a ideia de pôr legendas para "traduzir" o que diz um português. Sim, eu sei, a maioria dos brasileiros tem dificuldade para entender a fala de portugueses de determinadas regiões, mas, como sonho com a plena compreensão entre os dois povos, fico um tanto frustrado quando vejo que se vai pelo caminho mais fácil.

Mas o senão não está na opção pela colocação dos caracteres, que, como já afirmei, é discutível. O senão está nos erros (de "tradução", de grafia e de morfossintaxe). Se a opção é pelos caracteres, eles devem ser impecáveis. Tropeços elementares, como "graças à Deus", ou os que ocorreram na transcrição da fala de alguns entrevistados podem e devem ser evitados.

Num dos muitos belíssimos momentos do programa, a personagem foi a comovente e comovida Maria Etelvina, típica velhinha portuguesa que os anos não vergam. O repórter André Luiz Azevedo, mestre em descobrir maravilhas de Portugal, mostrou a arte de Etelvina na preparação de um bolo de carne, assado num talvez milenar forno de pedra. Etelvina revela um "segredo", uma reza, que diz sempre que exerce o seu sagrado ofício ("para a massa crescer"): "Deus te benza, Deus te acrescente, Deus te faça pão, Deus te bote a divina benção". Nos caracteres postos na tela, o que se viu não foi exatamente isso.

Dois detalhes deliciosos da fala de Etelvina merecem destaque: o primeiro diz respeito à pronúncia de "benção". Não, caro leitor, não está faltando o acento circunflexo, não. Nesse item, ponto para a produção do programa, que não inventou um circunflexo, que descaracterizaria a pronúncia de Etelvina, que emitiu o vocábulo como oxítono, como se faz com "sabão" ou "balão". A pronúncia "benção" é antiga e popular, segundo alguns dicionários.

O segundo detalhe delicioso é este: quando Azevedo saboreou a iguaria, disse a Etelvina que o gosto da carne prevalece. O que disse ao repórter a veneranda senhora? "Por isso é que sabe bem." Que caracteres se viram na tela nessa hora? Nenhum. Nada de nada.

Eu não quereria estar na pele da produção do programa. É bem provável que a exposição de "Por isso é que sabe bem" deixasse nas nuvens muitos dos telespectadores.

Em Portugal, ainda é muito comum o emprego de "saber" com o seu sentido original do latim ("ter sabor", como em "Isto sabe a café"). Esse emprego, que já foi comum entre nós, continua vivíssimo em italiano e em espanhol.

A leitura dos clássicos (brasileiros e portugueses) certamente nos proveria desse conhecimento, mas, num tempo em que autoproclamados arautos da ultramegapós-modernidade linguística dizem que não se devem ensinar/estudar fatos da "língua morta"... O resultado disso é a incapacidade de entender muitas das variedades do português.

Para encerrar, relembro aqui uma frase de um material publicitário da Coca-Cola portuguesa: "A vida sabe bem" ("A vida tem gosto bom").

Viva a língua portuguesa! É isso.

coluna.obituario@grupofolha.com.br]


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