Folha de S. Paulo


O 'acórdão' e o 'acordão'

Há alguns dias, num telejornal noturno, o apresentador disse que seria necessária a publicação de um "acordão" para que o partido X pudesse levar adiante... Talvez por influência do termo "acordão", muito mais frequente no noticiário do que o termo "acórdão", o apresentador leu "acordão" em vez de "acórdão".

Bem, a esta altura talvez seja preciso chamar a atenção "visual" do leitor, ao qual pergunto: reparou que escrevi duas palavras distintas, bem distintas? Escrevi "acordão", aumentativo de "acordo", e "acórdão", termo jurídico, que significa "decisão final proferida sobre um processo por tribunal superior, que funciona como paradigma para solucionar casos análogos" ("Houaiss"). Como já disse, o apresentador do telejornal leu "acordão", e não "acórdão", o termo cabível naquele contexto.

Neste país de acordos e acordões escandalosos, espúrios, em que, entre tantos exemplos escabrosos, Lula e Maluf posam juntos sorrindo, anunciam conchavos etc., em que Deus e o Diabo se unem pelas mais diversas razões, o acordão (aumentativo de "acordo") é termo muito mais comum do que "acórdão".

Isso talvez explique o cochilo do apresentador, mas nada explica o fato de ninguém na Redação ter percebido isso. Se alguém tivesse notado o cochilo, poderia ter dado a dica ao apresentador (pelo ponto eletrônico). O passo seguinte seria dado pelo próprio apresentador, que pediria desculpa e diria que a forma correta é "acórdão". O auge seria a explicação do significado desse termo.

Com tanta bobajada sendo dita nos telejornais ("crime doloso", por exemplo, que os colegas insistem em definir como "aquele em que há intenção de matar"), não custaria nada uma autocorreção e, melhor ainda, uma didática explicação.

Há um bom tempo, uma apresentadora (que integrava uma dupla que durante anos conduziu um telejornal noturno) disse que o Cruzeiro enfrentaria "o Nacional, de Montevídeo". Sim, caro leitor, "Montevídeo", com intensidade tonal no "i", como se fosse "monte" + "vídeo". Ora, a capital do querido Uruguai é a belíssima Montevidéu (com "éu", em português; em espanhol é "Montevideo").

A começar pelos precários painéis dos nossos aeroportos, não é difícil ver por aí a grafia "Montevideo", assim como não é difícil ver gente (jornalistas incluídos) que não tem o menor conhecimento da existência de uma cidade chamada "Montevidéu"... Bem, como acentuação, grafia, geografia etc. também são matérias raras para muita gente, não é surpresa alguém ler "Montevídeo".

Convém citar outro caso que deixa muita gente em maus lençóis: a grafia e a pronúncia de formas como "roubaram" e "roubarão", "enganaram" e "enganarão", "pedalaram" e "pedalarão", "mentiram" e "mentirão" etc. Nesses casos, as formas terminadas em "-ram" são da terceira do plural do pretérito perfeito do indicativo; as terminadas em "-rão" são da terceira do plural do futuro do presente do indicativo. Quem faz referência às pedaladas de 2014 e às (já confessadas) de 2015 dirá que os ciclistas de turno pedalaram por motivos "nobilíssimos"; quem achar que nada mudará em 2016 poderá dizer que esses "ínclitos" e "ímprobos" ciclistas pedalarão novamente.

Em tempo: cuidado com a leitura dos adjetivos que acabei de usar. Acento não é enfeite. "Ínclitos" e "ímprobos" são proparoxítonos, como nos indica a presença do acento agudo nas duas palavras. E cuidado: "ímprobo" (proparoxítono) é antônimo de "probo" (paroxítono). O significado desses adjetivos? Mãos à obra. Vá aos dicionários. É isso.


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