Folha de S. Paulo


'...que o Parlamento faça o seu trabalho'

Na terça-feira, falando sobre o aparentemente insolúvel impasse entre o Executivo e o Legislativo, um deputado oposicionista disse isto: "O governo não pode querer que o Parlamento faça o seu trabalho".

E então, prezado leitor? O que se conclui da fala do deputado? Foi ato falho? Houve ambiguidade intencional? Ou temos aí pura e simplesmente um lapso na construção da frase, que é evidentemente ambígua?

Até prova em contrário, parece claro que a intenção do deputado foi dizer que o governo não pode querer que o Parlamento faça o trabalho que cabe ao governo. No entanto, ao empregar o possessivo "seu", que muitas vezes é nitroglicerina pura, o deputado construiu uma frase potencialmente ambígua.

A estrutura da construção "O governo não pode querer que o Parlamento faça o seu trabalho" permite duas interpretações: a) o governo não pode querer que o Parlamento faça o que cabe ao governo; b) o governo não pode querer que o Parlamento faça o trabalho que cabe ao próprio Parlamento.

O conhecimento da realidade pode nos levar a deduzir qual é a intenção do emissor, embora esse conhecimento possa ser inútil quando se trata do Brasil. Ou alguém dirá que é impossível o infame (des)governo deste infame país pretender que o Parlamento não faça o que cabe ao próprio Parlamento?

Que fazer para evitar a ambiguidade? A coisa não é tão complicada. Tivéssemos aí um elemento feminino e outro masculino, bastaria empregar "dele" ou "dela": "O governo não pode querer que a Justiça faça o trabalho dele/dela". Como não temos essa situação, ou seja, como há dois elementos masculinos ("governo" e "Parlamento"), é preciso recorrer a outros expedientes para expressar a real intenção do emissor da frase. Um desses expedientes é a tão temida repetição: "O governo não pode querer que o Parlamento faça o trabalho do próprio governo"; "O governo não pode querer que o Parlamento faça o trabalho que cabe ao próprio governo".

Por que citei "a tão temida repetição"? Porque um dia aprendemos na escola que repetir uma palavra ou expressão é um dos mais graves pecados que se podem cometer na passagem pelo planeta. Pura bobagem! Muitas vezes, a repetição é não só possível como também necessária, por uma questão de clareza.

É célebre o caso de um texto abordado pela Unesp, em que um articulista falava de Alain Prost e Ayrton Senna. Depois de esgotar todos os elementos que poderiam se referir a cada um dos pilotos e assim evitar a repetição, surgiu um inacreditável "o nanico". Nanico? Ah, sim, um deles era um anão, mas o outro tinha traços goliardos...

Como se não bastasse a impertinência do termo "nanico", a baixa estatura era atributo dos dois, por isso nuvens cinzentas cobriram o céu do texto em questão. Se você morre de curiosidade e quer saber quem era o "nanico", lá vai: era Prost. É claro que a solução adequada teria sido repetir "Prost".

Por falar em ambiguidade, é clássica uma questão da Unicamp sobre o tema. O excerto abordado era este: "...onde (Bush) comeu um peru fantasiado de marine no mesmo bandejão...". Rarará! Vamos reescrever: "...onde, fantasiado de marine, (Bush) comeu um peru...".

Como se vê, algumas construções ambíguas resultam de barbeiragem linguística, outras têm origens diversas, instigantes... É isso.


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