Folha de S. Paulo


'Se tu soubesses como é triste...'

Hoje é feriado no Estado de São Paulo (revolução de 1932). Mas o dia 9 de julho marca também a morte (em 1980) de Vinicius de Moraes. Já são 35 anos sem o nosso Poetinha.

Genial em tudo que fez, Vinicius atuou na literatura, no cinema, no teatro, na música, sempre à frente do seu tempo. Na década de 50, conheceu Tom Jobim, e aí teve início a sua brilhante carreira de letrista.

Homem erudito, Vinicius transitava pelo clássico e pelo popular com absoluta desenvoltura e independência, seja na linguagem, seja na temática. Muitos dos chatos e presunçosos do chamado "mundo acadêmico" o tachavam e tacham de "poeta menor", o que sempre foi rebatido com lucidez por ninguém menos do que o ilustre Mestre Antonio Candido, este sim um acadêmico eternamente arejado.

Em muitas das letras que escreveu, o poeta seguiu à risca a tradição da língua, particularmente no que diz respeito ao emprego das flexões verbais e respectivas formas de tratamento. Tome-se como exemplo a letra de "Apelo" (a melodia é de Baden Powell), que transcrevo como está no site do próprio Vinicius:

"Ah, meu amor não vás embora / Vê a vida como chora / Vê que triste esta canção / Ah, eu te peço não te ausentes / Porque a dor que agora sentes / Só se esquece no perdão / Ah, minha amada, me perdoa / Pois embora ainda te doa / A tristeza que causei / Eu te suplico não destruas / Tantas coisas que são tuas / Por um mal que já paguei / Ah, minha amada, se soubesses / Da tristeza que há nas preces / Que a chorar te faço eu / Se tu soubesses um momento / Todo o arrependimento / Como tudo entristeceu / Se tu soubesses como é triste / Eu saber que tu partiste / Sem sequer dizer adeus / Ah, meu amor, tu voltarias / E de novo cairias / A chorar nos braços meus".

Note como Vinicius empregou o imperativo (tanto o afirmativo quanto o negativo): "não vás", "vê", "não te ausentes", "perdoa", "não destruas". De qual pessoa gramatical são essas flexões? São todas da segunda pessoa do singular (tu).

Não custa lembrar que o imperativo negativo tradicional ("não vás", "não te ausentes" e "não destruas") é cópia pura do presente do subjuntivo: "Não quero que tu vás"; "Não quero que tu te ausentes"; "Não quero que tu destruas". A segunda do singular do imperativo afirmativo é feita a partir do presente do indicativo, sem o "s" final: "eu vejo, tu vês" (vês "" s = vê); "eu perdoo, tu perdoas" (perdoas "" s = perdoa).

Se tomarmos as outras formas verbais e os pronomes (pessoais e possessivos) com os quais o eu poético se dirige à amada, veremos que são todos da segunda pessoa do singular: "tu sentes", "se tu soubesses", "tu partiste", "tu voltarias", "tu cairias", "te", "tuas".

O caro leitor certamente sabe que no português brasileiro atual, tanto na linguagem falada quanto na escrita (letras da música popular, prosa e poesia), o imperativo que vigora não é o que se vê na letra de Vinicius, que, como já vimos, espelha o que ocorre na tradição da língua.

Que fazer diante disso? Nada de radicalismos, caro leitor. O fundamental é entender que o ideal é ser poliglota na mesma língua, o que implica conhecer e dominar outras variedades linguísticas além das que se usam hoje. Como dizia o grande Professor João Alexandre Barbosa, de quem fui aluno e depois, num dos presentes que Deus me deu, colega (na revista "Cult"), sem conhecer o código em que está escrito o texto, é impossível captá-lo ou compreendê-lo. E viva Vinicius! É isso.


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