Folha de S. Paulo


'A poesia concreta das tuas esquinas'

Terminei o texto da semana passada com uma referência a esta passagem de "Sampa", de Caetano Veloso: "Alguma coisa acontece no meu coração ("¦) / É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi da dura poesia concreta das tuas esquinas...". Perguntei ao leitor o que entende (além do óbvio) da passagem "da dura poesia concreta das tuas esquinas". Para "ajudar", lembrei que a capital paulista é o berço de um movimento artístico importante.

Pois bem. Que movimento é esse? É justamente o "concretismo" ("...a dura poesia concreta..."), engendrado em São Paulo na década de 40 por Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald, entre outros. No concretismo, a arte materializa (concretiza) visualmente o que expressa, por meio de diversos recursos. Na poesia concreta, o texto não se vale da palavra só como elemento de significado; vale-se dela como elemento também imagético, sonoro, ideogramático, ideográfico. No concretismo, enfim, a palavra é um "tijolo", que participa da construção de uma mensagem visual, sonora, transmitida por uma sintaxe ideogramática.

Vamos traduzir isso com um exemplo concreto (perdão pelo trocadilho), o poema "Beba Coca-Cola", do grande Mestre Décio Pignatari:

Reprodução

Leia de novo, com toda a atenção do mundo, para não se deixar levar pelo piloto automático, isto é, para não ler "beba" onde está escrito "babe", por exemplo. Note a importância do visual e do sonoro para a composição da mensagem do poema, que desemboca no estranhamento causado por "cloaca", palavra que contém os fonemas presentes em "cola", em "coca" e em "caco". Se o leitor não sabe o que é "cloaca", vale a pena ir a um dicionário.

Na letra de "Sampa", ao se referir à poesia concreta, Caetano reitera a importância dessa estética na sua produção e na de outros grandes nomes da poesia musical brasileira, como Gilberto Gil, Walter Franco, Jorge Portugal, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, entre outros. Muitas das letras desses nossos grandes autores devem ser ouvidas com o texto nas mãos, para que a poesia seja não só ouvida, mas também vista.

Por que será que em "Sampa" Caetano escreveu "Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços / Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva"? "Campos" aí é uma referência direta aos irmãos Campos (Haroldo e Augusto), dois dos pais da poesia concreta brasileira. Em "tuas oficinas de florestas", é preciso levar em conta a elipse do verbo: "(vejo surgir) tuas oficinas de florestas", ou seja, as oficinas (= industrialização) surgem das florestas, mas... Mas com "oficinas" Caetano faz referência a um dos mais importantes centros de cultura de São Paulo e do Brasil, o teatro Oficina, fundado em 1958.

E lá vou eu repetir o que já disse aqui inúmeras vezes: a (boa) leitura vai muito além da mera decodificação dos caracteres, letras, palavras etc. É preciso perceber o texto no contexto, o que implica conhecer os assuntos dos quais o texto fala e, consequentemente, conhecer também os textos com os quais ele dialoga. Letra de música não é só um blá-blá-blá para preencher a melodia, sobretudo no caso da (boa) música brasileira, em que as letras muitas vezes são verdadeiras obras-primas. É isso.


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